quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Alfa e o Ômega

Fique atento: O português desse texto está escrito na forma de português de Portugal.

"Como esta é a primeira aula de Astrofísica neste semestre, pensei que, se calhar, era melhor fazer um apanhado geral sobre o essencial de dois pontos cruciais da matéria... uh... o... o Alfa e o Ômega. As equações e os cálculos ficarão para mais tarde. Parece-vos bem?"

Os estudantes responderam com um silêncio expectante. Apenas duas raparigas da fila da frente, preocupadas em não deixar o professor sem resposta, acenaram afirmativamente com a cabeça, encorajando-o a prosseguir.

"Bem... quem é que me sabe dizer o que são os pontos Alfa e Ômega?"

Luís Rocha era, além de inexperiente a dar aulas, teimoso, constatou Tomás. A turma mostrava-se passiva, talvez por respeito para com a figura ausente de Augusto Siza, talvez porque pressentia a inexperiência de Luís Rocha e queria testá-la até ao limite, mas a verdade é que o professor insistia em interpelar os alunos. Embora fosse a atitude pedagógica mais correcta, tal postura constituía sem dúvida, naquele contexto, um risco desnecessário.

Fosse como fosse, apenas o silêncio respondeu ao docente.

"Então?"

Mais silêncio.

A aula começava mal e tornava-se um tudo-nada confrangedora, mas Luís Rocha não baixou os braços e apontou para um aluno de barbas.

"O que é o ponto Alfa?"

O estudante estremeceu; até aí apreciara tranquilamente o espetáculo e não estava à espera de ser interpelado.

"Bem... uh... acho que... acho que é a primeira letra do alfabeto grego", exclamou, enchendo o peito de satisfação e sorrindo com a sua tirada.

"Como é que você se chama?"

"Nelson Carneiro."

"Nelson, esta não é uma cadeira de Línguas nem de História. Depois dessa resposta, eu diria que você está à beira de ser chumbado."

Nelson corou, mas o professor ignorou o rubor e virou-se para toda a classe.

"Ouçam bem", disse. "Comigo é premiado o aluno que colaborar na aula e se mostrar interventivo. Eu quero cabeças pensantes, mentes activas e inquisitivas, não quero esponjas passivas, entenderam?" Apontou de imediato para um aluno do outro lado, rapaz bem nutrido. "Em Astrofísica, o que é o ponto Alfa?"

"É o início do universo, professor", devolveu o gordinho muito depressa, escaldado com o que se passara momentos antes com Nelson.

"E o ponto Ômega?"

"É o fim do universo, professor."

Luís Rocha esfregou as mãos e Tomás, olhando-o do fundo do anfiteatro, não pôde deixar de pensar que se enganara; afinal, o professor não era inexperiente. Com umas frases apenas, ao ameaçar um aluno de reprovação e encorajando os outros a serem mais interventivos, pusera toda a turma em sentido.

"O Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o nascimento e a morte do universo", enunciou. "Eis os temas da nossa conversa de hoje." Deu dois passos para o lado. "Pergunto-vos eu: por que razão o universo tem de ter um princípio e um fim? Qual o problema de o universo ser eterno? Poderá ele ser eterno?"

A turma manteve-se em silêncio, ainda a digerir os novos métodos.

"Você aí, qual a resposta?"

Apontou para uma aluna de óculos, que logo ficou muito corada ao ver-se interpelada.

"Bem, professor... uh... eu não... não sei."

"Não sabe você, nem sabe ninguém", rematou o professor. "Mas essa é uma hipótese a considerar, não é? Um universo de duração infinita, sem princípio nem fim, um universo que sempre existiu e sempre existirá. Agora pergunto-vos, como é que vocês acham que a Igreja reage a este conceito?"

Os alunos fizeram um ar incrédulo, alguns pareciam mesmo duvidar que tinham escutado o que o professor perguntara.

"A Igreja?", admirou-se um deles. "O que tem a Igreja a ver com isto, professor?"

"Tudo e nada", retorquiu Luís Rocha. "A questão do princípio e do fim do universo não é uma questão exclusivamente científica, é um problema também teológico. Sendo uma questão essencial, ela bordeja já as fronteiras da física, ao ponto de quase entrar, ou entrar mesmo, na metafísica. Houve ou não houve Criação?" Deixou a pergunta pairar um instante no anfiteatro. "Baseada no que está escrito na Bíblia, a Igreja sempre preconizou um princípio e um fim, um Gênesis e um Apocalipse, um Alfa e um Omega. Mas a ciência começou, a certa altura, a aparecer com uma resposta diferente. Na sequência das descobertas de Copérnico, Galileu e Newton, os cientistas passaram a achar que a hipótese de um universo eterno era a mais provável. É que, por um lado, o problema da Criação remete para o problema do Criador, pelo que, eliminando-se a Criação, elimina-se a necessidade de um criador. Por outro, a observação do universo parece indiciar um mecanismo constante e estável, mais consonante com a ideia de que esse mecanismo sempre existiu e sempre existirá. Portanto, o problema está resolvido, não acham?" Aguardou um momento, à espera de resposta, mas como ninguém interveio o professor voltou para a secretária, pegou nos apontamentos e dirigiu-se para a saída. "Bem, uma vez que vocês acham que a questão está encerrada, não há motivo para continuarmos a aula, pois não? Se o universo é eterno, não há os problemas do Alfa e do Ômega. Como esta aula era dedicada a esses dois problemas, e eles já estão resolvidos, só me resta despedir-me, não é?" Acenou. "Então até para a semana."

Os alunos olharam-no, embasbacados.

"Adeus", repetiu o professor.



"Mas o professor já se vai embora?", quis saber uma estudante, desconcertada.

"Sim", retorquiu ele, ainda pregado à porta. "Pois vocês parecem satisfeitos com a resposta do universo eterno..."

"E é possível demonstrar o contrário?"

"Ah!", exclamou Luís Rocha, como se finalmente tivesse ouvido um argumento válido para continuar a aula. "Ora aí está uma possibilidade interessante." Deu meia-volta e regressou à secretária, despejando aí os apontamentos de novo. "Afinal a aula não acabou. Há ainda um pequeno pormenor a resolver. Será possível demonstrar que o universo não é eterno? Na verdade, esta pergunta remete para um problema crucial: o fato de as observações contradizerem a teoria." Esfregou as mãos. "Alguém aqui sabe que contradições são essas?"

Ninguém sabia.

"Bom, a primeira contradição surge na Bíblia, embora isso não tenha grande relevância no quadro da física, claro. Mas é uma curiosidade que tem graça explorar. Segundo relata o Antigo Testamento, Deus criou o universo numa explosão primordial de luz. Embora esta permanecesse a explicação padrão para as religiões judaica, cristã e muçulmana, a verdade é que ela veio a ser questionada fortemente pela ciência. Afinal de contas, a Bíblia não é um texto científico, pois não? A tese do universo eterno tornou-se assim, como vos disse, a explicação mais aceite, pelos motivos que já vos indiquei." Fez um gesto dramático com a mão. "Porém, no século XIX foi feita uma descoberta de grande importância, uma das maiores descobertas jamais efetuadas pela ciência, uma revelação que veio pôr em causa a ideia do universo com idade infinita." Passou os olhos pela turma. "Alguém sabe que descoberta foi essa?"

Todos permaneceram calados.

O professor pegou num marcador negro e rabiscou uma equação no quadro.

"Quem sabe o que é isto?"

Os alunos fixaram os olhos no quadro.

"Isso não é a segunda lei da termodinâmica?", perguntou um deles, um rapaz magro de óculos e despenteado, habitualmente dos mais brilhantes alunos do curso.

"Nem mais", exclamou Luís Rocha. "A segunda lei da termodinâmica." Apontou para cada um dos elementos da equação rabiscada no quadro. "O triângulo significa variação, o S quer dizer entropia, o > representa, como vocês sabem, o conceito de maior, e o 0 é o zero. Ou seja, o que esta equação nos vem dizer é que a variação da entropia do universo é sempre maior do que zero." Bateu no quadro com a ponta do marcador. "A segunda lei da termodinâmica." Apontou para o aluno que falara anteriormente. "Quem a formulou?"



"Clausius, professor. Em 1861, creio eu."

"Rudolf Julius Emmanuel Clausius", entoou o professor, claramente embalado na matéria. "Clausius já tinha formulado a lei da conservação da energia, afirmando que a energia do universo é uma eterna constante, nunca pode ser criada nem destruída, apenas transformada. Depois decidiu propor o conceito de entropia, que abarca todas as formas de energia e a temperatura, acreditando que ela também seria uma eterna constante. Se o universo era eterno, a energia teria de ser eterna e a entropia também. Mas quando começou a fazer medições, descobriu, chocado, que as fugas de calor de uma máquina excediam sempre a transformação do calor em trabalho, provocando ineficiências. Recusando-se a aceitar esse resultado, pôs-se a medir também a natureza, incluindo o ser humano, e concluiu que o fenómeno persistia em toda a parte. Depois de muito tentar, teve de se render à evidência. A entropia não era uma constante, antes estava sempre a aumentar. Sempre. Nasceu assim a segunda lei da termodinâmica. Clausius detectou a existência desta lei no comportamento térmico, mas o conceito de entropia rapidamente se generalizou a todos os fenômenos naturais. Percebeu-se que a entropia existia em todo o universo." Fitou os alunos. "Qual é a consequência desta descoberta?"

"As coisas envelhecem", disse o estudante de óculos.



"As coisas envelhecem", confirmou o professor. "A segunda lei da termodinâmica veio provar três coisas." Ergueu três dedos. "A primeira é que, se as coisas envelhecem, então haverá um ponto no tempo em que vão morrer. Isso acontecerá quando a entropia atingir o seu ponto máximo, no momento em que a temperatura se espalhar uniformemente pelo universo." Dois dedos. "A segunda é que existe uma flecha do tempo. Ou seja, o universo pode estar determinado e toda a sua história já existir, mas a sua evolução é sempre do passado para o futuro. Esta lei implica que tudo evolui com o tempo." Um dedo. "A terceira coisa que a segunda lei da termodinâmica veio provar é que, se está tudo a envelhecer, é porque houve um momento em que tudo era novo. Mais ainda, houve um momento em que a entropia era mínima. O momento do nascimento." Fez uma pausa dramática. "Clausius mostrou que houve um nascimento do universo."

"O professor está a dizer que já no século XIX se sabia que o universo não era eterno?"

"Sim. Quando a segunda lei da termodinâmica foi formulada e demonstrada, os cientistas logo perceberam que a ideia de um universo eterno era incompatível com a existência de processos físicos irreversíveis. O universo está a evoluir para um estado de equilíbrio termodinâmico, em que deixa de haver zonas frias e zonas quentes, antes uma temperatura constante em toda a parte, o que implica entropia total, ou máxima desordem. Ou seja, o universo parte de total ordem para acabar em total desordem. E esta descoberta foi acompanhada pelo aparecimento de outros indícios. Alguém conhece o Paradoxo de Olbers?"

Ninguém conhecia.

"O Paradoxo de Olbers está relacionado com a escuridão do céu. Se o universo é infinito e eterno, então não pode haver escuridão à noite, uma vez que o céu estaria obrigatoriamente inundado de luz proveniente de um número infinito de estrelas, não é? Mas a escuridão existe, o que é um paradoxo. Este paradoxo só se resolve se se atribuir uma idade ao universo, dado que assim se pode postular que a Terra só recebe a luz que teve tempo de viajar até ela desde o nascimento do universo. Essa é a única explicação para o facto de existir escuridão à noite."

"Portanto, houve mesmo um ponto Alfa, não é?", perguntou um aluno.

"Exato. Mas havia ainda um outro problema para resolver, relacionado com a gravidade. Os cientistas presumiam que o universo, sendo eterno, era também estático, e foi nesse pressuposto que assentou toda a física de Newton. O próprio Newton, porém, apercebeu-se de que a sua lei da gravidade, que estabelece que toda a matéria atrai matéria, tinha como consequência última que todo o universo estaria amalgamado numa grande massa. A matéria atrai a matéria. E, no entanto, olhando para o céu, percebe-se que não é isso o que se passa, pois não? A matéria está distribuída. Como explicar este fenômeno?"

"Não foi Newton que recorreu ao infinito?"

"Sim, Newton disse que era o fato de o universo ser infinito que impedia que a matéria se amalgamasse toda. Mas a verdadeira resposta foi dada por Hubble."

"O telescópio ou o astrônomo?"

"O astrônomo, claro. Na década de 1920, Edwin Hubble confirmou a existência de galáxias para além da Via Láctea, e, quando se pôs a medir o espectro da luz que elas emitiam, percebeu que se estavam todas a afastar de nós. Mais ainda, ele verificou que quanto mais longe se encontrava uma galáxia, mais depressa ela se afastava. Foi assim que se percebeu a verdadeira razão pela qual, em obediência à lei da gravidade, toda a matéria do universo não estava amalgamada numa única e enorme massa. É que o universo está em expansão." O professor estacou no centro do estrado, mirando a classe. "Pergunto-vos eu: qual a relevância desta descoberta para o problema do ponto Alfa?"

"É simples", disse o estudante de óculos, agitando-se no seu lugar. "Se toda a matéria do universo se está a afastar uma da outra, é porque no passado esteve junta."

"Nem mais. A descoberta do universo em expansão implica que houve um momento inicial em que tudo se encontrava junto e foi projetado em todas as direções. Aliás, os cientistas perceberam que isso batia certo com a Teoria da Relatividade Geral, que permitia o conceito de um universo dinâmico. Ora, com base em todas estas descobertas, houve um padre belga, chamado Georges Lemaitre, que, na década de 1920, propôs uma nova idéia."

Voltou-se para o quadro e rabiscou duas palavras inglesas.

Big Bang

"O Big Bang. A grande explosão." Voltou a encarar os alunos. "Lemaítre sugeriu que o universo nasceu de uma brutal explosão inicial. A ideia era extraordinária e resolvia de uma assentada todos os problemas existentes com o conceito de um universo eterno e estático. O Big Bang estava em consonância com a segunda lei da termodinâmica, solucionava o Paradoxo de Olbers, explicava a atual configuração do universo perante as exigências da lei da gravidade de Newton e batia certo com as teorias da Relatividade de Einstein. O universo começou com uma grande explosão súbita... embora talvez a expressão mais adequada não seja explosão, mas expansão."

"E antes dessa... uh... expansão o que havia, professor?", perguntou uma aluna de aspecto prendado. "Apenas o vácuo?"

"Não houve antes. O universo começou com o Big Bang."

A estudante fez um ar atrapalhado.

"Sim, mas... uh... o que havia antes da expansão? Tinha de haver alguma coisa, não?"

"É isso o que eu lhe estou a dizer", insistiu Luís Rocha. "Não houve antes. Não estamos a falar aqui de um espaço que existia vazio e que começou a ser preenchido. O Big Bang implica que não havia espaço sequer. O espaço nasceu com a grande expansão súbita, está a entender? Ora, as teorias da Relatividade estabelecem que espaço e tempo são duas faces da mesma moeda, não é? Assim sendo, a conclusão é lógica. Se o espaço nasceu com o Big Bang, o tempo também nasceu com esse acontecimento primordial. Não havia antes porque não existia o tempo. O tempo começou com o espaço, que começou com o Big Bang. Perguntar o que havia antes de haver o tempo é o mesmo que perguntar o que existe a norte do pólo Norte. Não faz sentido, entendeu?"

A aluna abriu muito os olhos e assentiu com a cabeça, mas era evidente que a ideia lhe parecia bizarra.

"Este problema do momento inicial é, aliás, o mais complexo de toda a teoria", salientou o professor, percebendo a estranheza do que tentava explicar. "Chamam-lhe uma singularidade. Pensa-se que todo o universo se encontrava comprimido num ponto infinitamente pequeno de energia e que, de repente, houve uma erupção, na qual se criou a matéria, o espaço, o tempo e as leis do universo."

"Mas o que provocou essa erupção?", perguntou o aluno de óculos, muito atento aos pormenores.

O rosto de Luís Rocha contraiu-se num novo tique nervoso. Este era o ponto mais delicado de toda a teoria, aquele em que havia mais dificuldades em explicar as coisas; não só porque as explicações eram contra-intuitivas, mas também porque os próprios cientistas se mostram ainda perplexos perante este problema.

"Bem, este é o ponto onde o mecanismo causal não se aplica", argumentou.

"Não se aplica, como?", insistiu o aluno. "O professor está a insinuar que não houve causa?"

"Mais ou menos. Reparem, eu sei que tudo isto parece esquisito, mas é importante que sigam o meu raciocínio. Todos os acontecimentos têm causas e os seus efeitos tornam-se causas dos acontecimentos seguintes. Certo?" Algumas cabeças assentiram, essa era uma evidência da física. "Ora bem, o processo causa-efeito-causa implica uma cronologia, não é? Primeiro vem a causa, depois produz-se o efeito." Ergueu a mão, tentando enfatizar o que ia dizer a seguir. "Agora reparem: se o tempo ainda não existia naquele ponto infinitamente pequeno, como podia um acontecimento gerar outro? Não havia antes nem depois. Logo, não havia causas nem efeitos, porque nenhum acontecimento podia preceder o outro."

"O professor não acha que essa é uma explicação um pouco insatisfatória?", perguntou o aluno de óculos.

"Eu não acho, nem deixo de achar. Estou apenas a tentar explicar-vos o Big Bang com os dados que temos hoje. A verdade é que, tirando o problema da singularidade inicial, esta teoria resolve de fato os paradoxos suscitados pela hipótese do universo eterno. Mas houve cientistas que, tal como alguns de vós, se sentiram insatisfeitos com o Big Bang e procuraram uma explicação alternativa. A hipótese mais interessante que apareceu foi a da teoria do universo em estado permanente, baseada na idéia de que a matéria de baixa entropia está constantemente a ser criada. Em vez de a matéria surgir toda numa grande expansão inicial, ela vai aparecendo gradualmente, em pequenas erupções ao longo do tempo, compensando a parte da matéria que morre ao atingir a máxima entropia. Assim sendo, o universo pode ser eterno. Esta possibilidade foi encarada seriamente pela ciência, ao ponto de, durante muito tempo, a teoria do universo em estado permanente ter sido sempre apresentada em pé de igualdade com a teoria do Big Bang."

"E por que motivo já não estão as duas em pé de igualdade?"

"Por causa de uma previsão da teoria do Big Bang. A haver uma grande expansão inicial, os cientistas perceberam que teria de existir uma radiação cósmica de fundo, uma espécie de eco dessa erupção primordial do universo. A existência desse eco foi prevista em 1948 e preconizava que teria uma temperatura por volta dos cinco graus Kelvin, ou seja, cinco graus acima do zero absoluto. Mas onde diabo estava o eco?" Encolheu o pescoço, arregalou os olhos e abriu os braços, numa expressão interrogativa. "Por mais que se procurasse, nada se encontrava. Até que, em 1965, dois astrofísicos americanos estavam a levar a cabo trabalho experimental numa grande antena de

comunicações de New Jersey quando depararam com um irritante barulho de fundo, uma espécie de assobio provocado por vapor. O barulho era enervante e parecia vir de toda a parte do céu. Por mais que virassem a antena para um lado ou para outro, na direção de uma estrela ou de uma galáxia, de um espaço vazio ou de uma nebulosa distante, o som persistia. Andaram um ano a tentar eliminá-lo. Verificaram cabos elétricos, procuraram uma qualquer fonte que estivesse na origem da avaria, fizeram tudo, mas não havia meio de localizarem o problema que provocava aquele ruído insuportável. Em desespero de causa, decidiram ligar aos cientistas da Universidade de Princeton, a quem relataram o que estava a acontecer e pediram uma explicação. E a explicação veio. Era o eco do Big Bang."

"Como assim, o eco?", admirou-se o estudante de óculos. "Que eu saiba, no espaço não há som..."

"O eco é uma força de expressão, claro. O que eles estavam a captar era a luz mais antiga que chegou até nós, uma luz que o tempo tinha transformado em microondas. Chama-se a isso radiação cósmica de fundo e as medições térmicas revelaram que ela se encontra nos três graus Kelvin, muito próximo da previsão feita em 1948." Fez um gesto rápido com a mão. "Oiçam, nunca vos aconteceu ligarem um televisor numa frequência em que não há emissão? O que vêem vocês? Hã?"

"Estática, professor."

"Barulho. Vemos aqueles pontinhos todos a pulularem no ecrã e um ruído enervante, assim crrrrrrrrrrrr, não é? Pois ficam a saber que um por cento desse efeito é proveniente deste eco." Sorriu. "Portanto, se um dia estiverem a ver televisão e nada vos interessar, sugiro-vos que

sintonizem um canal sem programação e fiquem a ver o nascimento do universo. Não há melhor reality show que esse."

"E essa erupção inicial, professor, é possível demonstrá-la matematicamente ?"

"Sim. Aliás, Penrose e Hawking provaram uma série de teoremas que mostraram que o Big Bang é inevitável, desde que a gravidade consiga ser uma força de atração nas condições extremas em que se formou o universo." Fez sinal na direcção do quadro. "Numa das próximas aulas vamos ver esses teoremas."

"Mas, ó professor, explique lá um pouco melhor o que aconteceu logo a seguir ao Big Bang. Formaram-se as estrelas, é?"

"Tudo aconteceu algures entre há dez e vinte mil milhões de anos, provavelmente há quinze mil milhões de anos. A energia estava concentrada num ponto e expandiu-se numa monumental erupção."

Voltou-se para o quadro e escreveu a famosa equação de Einstein.

E = mc2

"Como, segundo esta equação, a energia equivale a massa, o que se passou foi que a matéria emergiu da transformação da energia. No primeiro instante apareceu o espaço e logo se expandiu. Ora, como o espaço está ligado ao tempo, o aparecimento do espaço implicou automaticamente o aparecimento do tempo, que também se expandiu. Nesse primeiro instante nasceu uma superforça e apareceram todas as leis. A temperatura era imensa, umas dezenas de milhares de milhões de graus. A superforça começou a separar-se em forças diferentes. Iniciaram-se as primeiras reações nucleares, que criaram os núcleos dos elementos mais leves, como o hidrogênio e o hélio, e ainda vestígios de lítio. Em três minutos foi produzida noventa e oito por cento da matéria que existe ou alguma vez existirá."

"Os átomos que fazem parte do nosso corpo remontam a esse momento?"

"Sim. Noventa e oito por cento da matéria que existe foi formada a partir da erupção de energia do Big Bang. Isso significa que quase todos os átomos que se encontram no nosso corpo já passaram por diversas estrelas e já ocuparam milhares de organismos diferentes até chegarem a nós. E temos tantos e tantos átomos que se calcula que cada um de nós possui pelo menos um milhão que já pertenceu a qualquer pessoa que viveu há muito tempo." Ergueu o sobrolho. "Isto significa, meus caros, que cada um de nós tem muitos átomos que já estiveram nos corpos de Abraão, Moisés, Jesus Cristo, Buda ou Maomé."

Fez-se um burburinho na sala.

"Mas regressemos então ao Big Bang", disse Luís Rocha, fazendo sobrepor a sua voz à do rumor espantado que se ergueu pela turma. "Depois da erupção inicial, o universo começou a organizar-se automaticamente em estruturas, obedecendo às leis criadas nos primeiros instantes. Com o tempo, as temperaturas baixaram até atingirem um ponto crítico em que a superforça se desintegrou em quatro forças: primeiro a força da gravidade, depois a força forte, finalmente separaram-se a força electromagnética e a força fraca. A força da gravidade organizou a matéria em grupos localizados. Ao fim de duzentos milhões de anos, acenderam-se as primeiras estrelas. Nasceram os sistemas planetários, as galáxias e os grupos de galáxias. Os planetas eram inicialmente pequenos corpos incandescentes que orbitavam as estrelas, como se fossem estrelas pequenas. Esses corpos arrefeceram ao ponto de solidificarem, como aconteceu com a Terra." Abriu os braços e sorriu. "E aqui estamos nós."

"O professor disse há pouco que os planetas pareciam pequenas estrelas que acabaram por solidificar. Isso quer dizer que o Sol também vai solidificar?"

Luís Rocha esboçou uma careta.

"Eh pá! Não me estraguem a manhã a pensar nisso!"

A turma riu-se.

"Mas isso vai acontecer?", insistiu a aluna.

"É sempre simpático falar no nascimento, já viram? Quem não gosta de ver crianças a nascer?" Sacudiu a mão. "Mas, agora, falar na morte... hmm, isso é outra coisa. E, no entanto, a resposta à sua pergunta é afirmativa. Sim, o Sol vai morrer. Aliás, primeiro vai morrer a Terra, depois morrerá o Sol, depois morrerá a galáxia, por último morrerá o universo. É essa a consequência inevitável da segunda lei da termodinâmica. O universo caminha para a entropia total." Fez um gesto teatral. "Tudo o que nasce, morre. O que nos remete directamente do ponto Alfa para o ponto Ômega."

"O fim do universo."

"Sim, o fim do universo." O professor esticou dois dedos e exibiu-os à turma. "Tudo indica que existem duas possibilidades diante de nós."

Voltou-se para o quadro e rabiscou uma frase em inglês.

1. Big Freeze


"A primeira é o chamado Big Freeze, ou grande gelo. Trata-se da consequência última da segunda lei da termodinâmica e da expansão eterna do universo. Com o aumento da entropia, as luzes vão-se apagando gradualmente até haver uma temperatura uniforme em todo o lado, transformando o universo num imenso e gelado cemitério galáctico."

"Isso não é já amanhã, pois não?", gracejou um estudante.

Risos na classe.

"Calcula-se que será daqui a uns cem mil milhões de anos, no mínimo." Fez uma careta com o seu tique nervoso. "Eu sei que é um valor tão grande que não vos diz nada, por isso é melhor eu apresentar as coisas de uma maneira mais compreensível. Imaginem que o universo é um homem que morrerá aos cento e vinte anos. Então, o que vos posso dizer é que o Sol apareceu aos dez anos de vida e nós estamos nos quinze anos de vida. Isto significa que ainda existem cento e cinco anos de vida pela frente. Não é mau, pois não?"

A turma assentiu e Luís Rocha voltou-se de novo para o quadro.

"Bem, vamos agora à segunda possibilidade do ponto Ômega."

Escreveu com o marcador negro mais uma frase na superfície lisa do quadro.


2. Big Crunch


"A segunda possibilidade é a do Big Crunch, ou o grande esmagamento", anunciou, encarando novamente a turma. "A expansão do universo abranda e chegará a um momento em que irá parar, começando depois a encolher." Fez um movimento largo com as mãos, como se tivesse entre elas um balão gigante a crescer, a parar e a encolher. "Devido à força da gravidade, o espaço, o tempo e a matéria começarão a convergir entre si até se esmagarem num ponto infinito de energia." As palmas das mãos juntaram-se. " O Big Crunch é, se quiserem, o Big Bang ao contrário."

"Como um balão que incha e desincha?"

"Exato. No entanto, a contração não se deve a um desinchar, antes aos efeitos da gravidade." Luís Rocha pôs a mão no bolso e tirou uma moeda. "Como esta moeda, estão a ver?" Atirou a moeda ao ar, a moeda subiu um metro nas alturas e caiu de novo na sua mão. "Viram? A moeda subiu, parou a ascensão e desceu, voltando ao ponto inicial. Primeiro venceu a gravidade, depois foi vencida pela gravidade."

Um outro aluno ergueu o dedo e o professor fez-lhe sinal com a cabeça para falar.

"Professor, qual dessas duas possibilidades de morte do universo é a mais forte?"

Luís Rocha bateu com o marcador no primeiro ponto.

"Os astrofísicos inclinam-se para o Big Freeze."

"Porquê?"

"Por dois motivos, ambos resultantes das observações astronômicas. Em primeiro lugar, porque o Big Crunch requer que haja muito mais matéria no universo do que a que nós vemos. A matéria encontrada é insuficiente para, através da gravidade, provocar a contracção do universo. Para resolver este problema, avançou-se com a hipótese de existir matéria negra, ou seja, uma matéria que permanece invisível aos nossos olhos, devido à sua fraca interação. Essa matéria negra constituiria noventa por cento ou mais da matéria existente no universo. O problema é que é difícil encontrar a tal matéria negra. Além disso, se ela existir, será que se encontra disponível em quantidade suficiente para travar a expansão?" Encolheu os ombros. "Em segundo lugar, o Big Freeze parece mais provável por causa de novas observações justamente sobre a expansão do universo. Em 1998 descobriu-se que a velocidade a que as galáxias se afastam está a aumentar. Repito, está a aumentar. Isso acontece provavelmente devido a uma nova força que até aqui se desconhecia, a que se designou força escura, já prevista por Einstein e que combate a força de gravidade. Ora, o Big Crunch requer que a velocidade de expansão diminua até parar e começar a contracção, não é? Mas se a velocidade de expansão está a aumentar, a conclusão que se tira só pode ser uma." Passou os olhos pela turma. "Alguém me sabe dizer qual é essa conclusão?"

O aluno de óculos ergueu o dedo.

"O universo caminha para o Big Freeze."

O professor abriu as mãos e sorriu.

"Bingo!"


Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A saída encontrada via uma simplicidade desconcertante

A Ford americana fez uma pesquisa para medir a influência da opinião de seus clientes sobre possíveis compradores. Apurou que um cliente insatisfeito espalha sua opinião para 22 pessoas, e um satisfeito, para oito. Isso ainda é mais preocupante na era dos blogs, em que as pessoas têm espaço ilimitado para relatar suas experiências, positivas ou negativas, e fazer críticas livremente, com audiências cada vez maiores. Como bem resumiu Kevin Roberts, publicitário inglês: “Nada é mais poderoso que a recomendação de um amigo.”

Ou seja, a melhor forma de divulgar sua marca e reter consumidores é investir no bom atendimento. Isso significa prezar por uma experiência agradável em todos os pontos de contato com o público, desde a equipe de vendas, representantes da marca e funcionários até o serviço de telemarketing.

De todas as formas de atendimento deficiente, nada irrita mais do que o telemarketing padrão: frio, mecânico, repetitivo – “O ramal tá ocupado. O senhor poderia estar ligando mais tarde? Não consta, algo mais? Não é daqui, senhor. Só um minutinho, que vou estar transferindo para o ramal responsável. Sua ligação é muito importante para nós. Aguarde mais um momento que já vamos atendê-lo.”

Em contrapartida, quando encontramos um atendente rápido e eficaz, que realmente quer resolver nosso problema, ganhamos o dia, não é mesmo? Foi isso o que aconteceu com os clientes de uma empresa de televendas americana nos anos 1980.

Uma das telefonistas se sobressaía por ser simpática, atenciosa, espontânea e estar sempre de bom humor. Rapidamente, ela se tornou a preferida dos clientes, o que gerou um enorme problema de congestionamento nas linhas. Afinal, todas as pessoas queriam falar com ela, a Susan.

A saída encontrada pela empresa foi de uma simplicidade desconcertante. Primeiro, promoveu um treinamento no qual a atendente-modelo ensinou às outras os segredos de sua popularidade com os clientes. Depois disso, numa atitude surpreendente, a direção determinou que todas as telefonistas se apresentassem como... Susan.

Todas seriam clones da Susan: ouviriam como ela, falariam como ela, se interessariam como ela. E até levariam seu nome.

O resultado? Bem, lógico que alguns clientes suspeitaram que não era a Susan original que os estava atendendo. Mas qual a diferença? Eles estavam recebendo um bom atendimento. Era isso o que importava.


Texto extraído do livro "Oportunidades Disfarçadas", escrito por Carlos Domingos, editora Sextante, 2009.

Nota do Autor do Blog: Esse é a última postagem relacionada a esse livro. Espero que tenham gostado...

sábado, 26 de outubro de 2013

O que diferencia líderes visionários de comerciantes comuns

Por volta dos anos 1950, os Estados Unidos entraram num período de grande prosperidade econômica. Animados com o otimismo geral do pós-guerra, os casais voltaram a ter filhos. Diversos empresários viram possibilidades de faturar alto com o baby boom.

Foi o que aconteceu com o proprietário de uma pequena loja de móveis para bebês de Washington. Em menos de um mês, diversos clientes haviam procurado seu estabelecimento atrás de brinquedos: “O senhor tem bonecas? Carrinho de madeira? Cavalo de pau? Pião? Joguinhos?”

Até aquela época, produtos infantis como esses eram encontrados em lojas de departamentos e, principalmente, no período do Natal. Não passava pela cabeça de ninguém (talvez, só das crianças) que a gurizada gostasse de ganhar brinquedos também no restante do ano.

O proprietário do armazém citado acima, o comerciante Charles Lazarus, decidiu atender os consumidores. Entrou em contato com os fabricantes e encomendou os itens mais pedidos. O sucesso foi rápido. Em 1957, ele já possuía três lojas em que os brinquedos eram o negócio principal. Sempre guiado pelas solicitações dos clientes, Lazarus introduziu novidades no segmento, como descontos significativos, ampla variedade e auto-serviço. Com tantos atrativos, a rede não parou mais de crescer. Esta é a história da Toys “R” Us. A rede chegou a ter mais de 1.500 lojas espalhadas pelo mundo e um faturamento anual acima dos US$ 11 bilhões.

Note que Lazarus não teve qualquer informação privilegiada ou vantagem competitiva em relação aos demais lojistas. O que ele teve mais do que os outros foi sensibilidade, coragem e espírito empreendedor. É isso o que diferencia líderes visionários de comerciantes comuns.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

E assim a Honda dominou o mercado de motos nos EUA, na década de 60

Para identificar oportunidades disfarçadas, os executivos precisam estar dispostos a mudar de direção de acordo com a voz que vem das ruas, como demonstram os três exemplos a seguir.

Em 1959, uma marca japonesa de motocicletas tentava entrar no mercado americano. Tarefa quase impossível. Isso porque, naquele mundo pós-guerra, os japoneses e seus produtos tinham péssima imagem em todo o mundo. Para piorar, as motos eram de grandes cilindradas, 250cc e 350cc, tinham preços elevados e ainda apresentavam problemas na embreagem e vazamento de óleo.

Diariamente, os vendedores voltavam para o escritório desanimados com a fria recepção. Em meio a tantas queixas, alguns traziam um comentário curioso: os clientes não se interessavam pelas motos maiores, mas algumas pessoas achavam interessantes as “cinqüentinhas” que a equipe de vendas usava para se locomover pelas cidades. O modelo de 50cc, chamado Super Cub, fora desenvolvido especialmente para os vendedores. Ninguém poderia imaginar que os americanos, tradicionais amantes de veículos grandes e possantes, pudessem se interessar por motos tão frágeis e pequenas.

Certo dia, um dos representantes retornou à central dizendo que tinha uma notícia boa e outra ruim:

– A boa é que consegui uma encomenda de 25 motocicletas.

Todo mundo festejou.

– E a notícia ruim? – alguém perguntou.

– Vendi o que não podia: as nossas cinqüentinhas.

Então, a empresa japonesa resolveu deixar de lado os modelos grandes e investir nas 50cc. A estratégia contou também com o apoio de uma intensa campanha publicitária associando o produto a diversão barata. Foi dessa forma que a Honda entrou no mercado americano. E obteve rápido crescimento: em apenas quatro anos, a marca já detinha 50% do segmento de motocicletas no país.

Interessante, não é mesmo? Infelizmente, muitas empresas preferem impor suas convicções em vez de ouvir a voz do mercado. Inúmeras oportunidades são desperdiçadas em função de miopia, orgulho ou ego dos executivos. “Por mais que uma empresa seja grande, o dono precisa ser humilde”, dizia o comandante Rolim. Nesse sentido, negócios menores são mais fáceis de manobrar.



Texto extraído do livro "Oportunidades Disfarçadas", escrito por Carlos Domingos, editora Sextante, 2009.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Foi assim que Max Factor criou a base, ou pancake

Por falar em moda, uma coisa que sempre esteve em alta foi a mulher cuidar da aparência. Desde tempos remotos, elas se preocupam com roupa, cabelo, pele e se afligem com o aparecimento das temidas rugas.

Imagine então o desespero das atrizes de Hollywood em 1930. A chegada do cinema em cores permitiu a transmissão de uma imagem mais realista, o que tornou visíveis os pés-de-galinha, as marcas de expressão, os poros abertos, as espinhas, etc. A nova tecnologia incluía também uma iluminação mais forte nos estúdios, que derretia a maquiagem e expunha ainda mais as imperfeições.

Quem testemunhava a aflição das estrelas era o maquiador Max. Ele atendia a grandes nomes como Greta Garbo, Marlene Dietrich e Katherine Hepburn, entre outras. Na linha do “eu era feliz e não sabia”, elas se lembravam com saudades do cinema em preto-e-branco, que as deixava com pele de bebê na tela.

Não havia o que fazer, pensou Max. Talvez a única saída fosse uma maquiagem mais forte do que o pó-de-arroz utilizado até então. Alguém tinha que inventar isso e... “Ei, por que não eu?”, pensou o maquiador.

Em seu próprio salão, Max iniciou inúmeros testes. Misturou produtos diferentes, pesquisou substâncias, falou com outros especialistas. Finalmente, depois de muitas tentativas, ele chegou a uma loção cremosa, consistente, que tinha a mesma cor da pele. As clientes fizeram fila para experimentar a novidade. Foi assim que Max Factor criou a base, ou pancake, e atendeu à necessidade das mulheres do mundo inteiro. A partir do produto, Max Factor construiu um verdadeiro império da indústria de cosméticos.

Quem planeja abrir um novo negócio ou se aventurar em outro segmento deve ter atenção redobrada aos anseios do consumidor. Só assim poderá identificar falhas das empresas atuantes do setor e criar um diferencial realmente relevante.



Texto extraído do livro "Oportunidades Disfarçadas", escrito por Carlos Domingos, editora Sextante, 2009.

sábado, 19 de outubro de 2013

A verdadeira necessidade de um concorrente

Uma das redes que também via seu futuro ameaçado pelos passos da gigante era a Target. Um dos principais varejistas do mercado americano, a empresa assistia preocupada a parte de seu público migrar para a rival nos anos 1990.

Foi este o cenário que o CEO Bob Ulrich encontrou ao assumir a rede, em 1995. O executivo fez uma análise da situação e concluiu o que todos já sabiam: era impossível vencer o Wal-Mart. Pelo menos, com as mesmas armas que ele: agressividade e preços baixos. A Target só teria chance se trilhasse outro caminho.

Bob apostou que havia espaço para uma rede que oferecesse mais do que preço e variedade, mas também charme, estilo e design. Tudo o que o Wal-Mart, devido a seu tamanho, não poderia oferecer.

Como é possível aliar charme a um varejo desse tipo? Simples: apelando para a criatividade. Veja como, em cinco passos, a Target de Bob Ulrich construiu um dos maiores cases do varejo recente.

1) As lojas foram repaginadas para ficarem mais claras, limpas e organizadas. Para evitar longas filas, todas as caixas disponíveis foram ativadas. A meta era ter o mínimo de espera. No máximo, uma pessoa sendo atendida e outra aguardando.

2) Firmaram parceria com fabricantes menores e pouco conhecidos para a produção de linhas exclusivas. Em troca, a rede prometeu transformar os produtos locais em marcas nacionais.

3) A seguir, desenvolveram-se linhas de produtos assinados por personalidades. Como todo mundo sabe, gente famosa custa muito dinheiro. Mas a Target pensou diferente: pesquisou nomes de pessoas conhecidas mas que, momentaneamente, estavam por baixo ou desaparecidas da mídia. Gente como os estilistas Isaac Mizrahi e Mossimo Giannulli e os arquitetos Michael Graves e até mesmo (o hoje onipresente) Philippe Starck.

4) Mas de nada adiantaria fazer isso tudo se ninguém chegasse a saber. Assim, o desafio seguinte foi trabalhar a exposição na mídia. Em vez de investir pesado em propaganda, como fazia o concorrente, a Target apelou para ações criativas e de grande impacto. Exemplos: no Natal de 2002, a rede ancorou em plena Manhattan um barco de 67 metros repleto de presentes. Em 2004, patrocinou a reabertura do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa), e ofereceu entrada gratuita para a população todas as sextas-feiras à noite. Em 2007, realizou o primeiro desfile em que, em vez de modelos, foram utilizados hologramas em alta definição para exibir as roupas da nova estação. Resultado: repercussão na imprensa, simpatia do público e construção de uma marca de varejo cool.

Assim, a despeito do todo-poderoso Wal-Mart, a Target vem crescendo nos últimos anos e se firmando como uma varejista diferenciada. Atraiu um público mais qualificado, com maior poder aquisitivo, e desfruta uma ótima lucratividade. Enquanto o setor tem enfrentado dificuldades, o lucro líquido da Target está próximo de 17% (o do Wal-Mart gira em torno de 3,5%). Em 2008, a rede registrou US$ 65 bilhões em faturamento, um aumento de 20% em comparação com 2005.

Atualmente, existem 1.591 lojas Target nos Estados Unidos. Detalhe: 70% delas estão nos mesmos mercados que o Wal-Mart. Apesar disso, graças à estratégia de linhas exclusivas e itens assinados, apenas 40% dos produtos se sobrepõem e são concorrentes diretos. E o objetivo é reduzir essa semelhança ainda mais.

Note que a rede só encontrou esse caminho vencedor porque foi pressionada pelo concorrente. Se não fosse pelo Wal-Mart, talvez a Target fosse apenas mais uma rede de varejo.

Olhando por esse prisma, chegamos à conclusão de que ter concorrentes não é nada agradável, mas é necessário. É o que nos obriga a ser cada dia melhores. Como diz o brilhante texto abaixo, encontrado entre os papéis de Attilio Fontana, fundador da Sadia:

“Benditos sejam os meus concorrentes

Que me fazem levantar cedo e me render mais o dia

Que me obrigam a ser mais atencioso, competente e correto

Que me fazem avivar a inteligência para melhorar meus produtos e meus serviços

Que me impõem a atividade, pois, se não existissem, eu seria lânguido, incompetente e retrógrado

Que não dizem minhas virtudes e gritam bem alto meus defeitos e, assim, posso me corrigir

Que quiseram arrebatar-me o negócio, forçando-me a me desdobrar para conservar o que tenho

Que me fazem ver em cada cliente um homem a quem devo servir, e não explorar, o que faz de cada um meu amigo

Que me fazem tratar humanamente meus vendedores, para que se sintam parte de minha empresa e, assim, vendam com mais entusiasmo

Que provocaram em mim o desejo de me superar e melhorar meus produtos

Que por sua concorrência me converti em um fator de progresso e prosperidade para o meu país

Salve, concorrentes, eu os saúdo...

Que o Senhor lhes dê vida longa.”

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A história da The Body Shop

nos anos 1970, o segmento de cosméticos na Inglaterra sofria forte pressão da sociedade. O motivo era a prática de utilizar animais como cobaias em testes de novos produtos de beleza. Os fabricantes do setor se defendiam dizendo que as indústrias farmacêuticas e alimentícias também faziam isso. Mas, para os ativistas, os casos eram bem diferentes: enquanto remédios e alimentos são gêneros de primeira necessidade, cosméticos eram apenas capricho das classes mais abastadas. As lojas do segmento reforçavam essa visão: eram ostensivas e luxuosas, e seus produtos, caros.

O debate se intensificou a tal ponto que os manifestantes partiram para a violência. Lojas foram depredadas; proprietários, agredidos; houve inúmeros conflitos com a polícia.

Você concorda que, num ambiente hostil como aquele, ninguém ousaria lançar uma nova marca de cosméticos, certo? A não ser, é claro, que identificasse naquilo tudo uma grande oportunidade.

O casal Anita e Gordon Roddick já tinha tentado montar um restaurante e um pequeno hotel. Mas, agora, buscavam um novo ramo para atuar. Anita e Gordon avaliaram que o movimento em favor dos animais não seria uma onda passageira. Pelo contrário, tenderia a aumentar com o passar dos anos. O casal resolveu investir seu patrimônio no desenvolvimento de loções que não realizavam testes com bichos.

Depois de muito trabalho, chegaram a uma linha de beleza que só utilizava produtos naturais. Na hora de montar a loja, tiveram cuidado redobrado para não serem confundidos com o restante da indústria: optaram por uma decoração simples, com apenas o mínimo necessário para ser aconchegante.

Foram mais longe: determinaram que uma parcela das vendas seria destinada para auxiliar projetos de proteção aos animais. No lançamento da marca, em 1976, outro diferencial: em vez de propaganda, usaram apenas um eficiente trabalho de assessoria de imprensa divulgando o posicionamento, a filosofia e os valores inovadores da empresa.

O discurso da The Body Shop atingiu em cheio o coração dos ingleses, que não apenas se transformaram em consumidores, como também em defensores e divulgadores da nova grife. O engajamento deu impulso e grande visibilidade para a empresa.

Com certeza, o êxito da estratégia se deveu ao fato de o compromisso ser real, e não apenas para inglês ver (desculpe o trocadilho). Em pouco tempo, a The Body Shop repassava gordas contribuições para a campanha Salve as Baleias, do Greenpeace, e apoiava fundações importantes, como o The Big Issue, em prol de moradores de rua.

Graças ao seu diferencial social e ambiental, a The Body Shop se transformou numa marca global praticamente sem investimentos em mídias de massa. Atualmente, possui 2.100 lojas espalhadas em 55 países e fatura mais de US$ 800 milhões por ano.

Note como os Roddick foram visionários: apostaram no compromisso ecológico e social quase 20 anos antes de isso se tornar uma tendência mundial.

Uma visão diferente sobre nós mesmos, baseado na total racionalidade matemática

Fique atento: O português desse texto está escrito no português de Portugal.

"Como se sente o pai?"

Manuel Noronha suspendeu a colher no ar e olhou para o filho.

"Tenho medo", disse simplesmente.

Tomás abriu a boca, prestes a perguntar-lhe de que é que tinha medo, mas calou-se a tempo, tão evidente era a resposta. Foi porém nesse instante, no preciso momento em que calou a pergunta que lhe assomara à boca, que percebeu que algo de diferente tinha acontecido com aquela resposta; o pai de algum modo abrira uma janela dentro de si, pela primeira vez dissera-lhe o que sentia sobre alguma coisa. Foi como se, naquele exato segundo, se tivesse processado uma qualquer transformação, como se uma racha se tivesse aberto na muralha que os dividia, como se uma ponte se tivesse erguido sobre um rio intransponível, como se a barreira entre pai e filho se tivesse tornado infinitamente mais pequena. O grande homem, o gênio da matemática que vivia cercado de equações e logaritmos e fórmulas e teoremas, descera à terra e tocara no filho.

"Eu compreendo", limitou-se Tomás a dizer.

O pai abanou a cabeça.

"Não, filho. Não compreendes." Meteu finalmente a colher à boca. "Vivemos a vida como se ela fosse eterna, como se a morte fosse algo que só acontece aos outros e apenas nos está reservada ao fim de muito tempo, tanto tempo que nem merece a pena pensarmos nisso. Para nós, a morte não passa de uma abstração. No entretanto, eu preocupo-me com as minhas aulas e as minhas pesquisas, a tua mãe preocupa-se com a igreja e com as pessoas que vê a sofrerem no noticiário ou na novela, tu preocupas-te com o teu salário e com a mulher que já não tens e com papiros e estelas e outras relíquias cheias de irrelevâncias." Olhou, pela janela da cozinha, para os clientes de uma esplanada, lá em baixo, na Praça do Comércio. "Sabes, as pessoas passam pela vida como sonâmbulas, preocupam-se com o que não é importante, querem ter dinheiro e notoriedade, invejam os outros e esmifram-se por coisas que não valem a pena. Levam vidas sem sentido. Limitam-se a dormir, a comer e a inventar problemas que as mantenham ocupadas. Privilegiam o acessório e esquecem o essencial." Abanou a cabeça. "Mas o problema é que a morte não é uma abstração. Em boa verdade, ela está já aqui ao virar da esquina. Um dia, estamos nós muito bem a deambular pela rua da vida como sonâmbulos, vem um médico e diz-nos: você pode morrer. E é nesse instante, quando de repente o pesadelo se torna insuportável, que finalmente despertamos."

"O pai despertou?"

Manuel levantou-se da mesa, colocou o prato vazio no lavatório e abriu a torneira, passando o prato pela água.

"Sim, despertei", disse. Fechou a torneira e voltou a sentar-se na mesa da copa. "Despertei para, se calhar, viver os meus derradeiros instantes." Olhou para o lavatório. "Despertei para ver a vida escoar-se como a água que desaparece por aquele ralo." Tossiu. "Às vezes sinto uma raiva muito grande com o que me está a acontecer. Ponho-me a perguntar a mim mesmo: porquê eu? Com tanta gente que há por aí, tanta gente que não anda cá a fazer nada, por que razão me havia de acontecer isto a mim?" Passou a mão pela cara. "Olha, noutro dia ia a caminho do hospital e cruzei-me com o Chico da Pinga. Lembras-te dele?"

"Quem?"

"O Chico da Pinga."

"Uh... não, acho que não conheço..."

"Conheces, pois. É aquele velho que passa o dia nos copos e que às vezes vemos por aí aos ziguezagues, todo borracho, com umas roupas muito porcas e andrajosas."

"Ah, sim! Já sei quem é, lembro-me de o ver quando era miúdo. Ele ainda é vivo?"

"Vivo? O homem está são que nem um pêro! Anda sempre bêbado como um cacho, não faz nem nunca fez nada na vida, cheira mal, escarra no chão e bate na mulher... enfim, um vadio, um... um inútil! Pois, olha, cruzei-me com ele e pensei: mas por que raio não foi ele a ficar doente? Mas que Deus é este que me dá uma doença tão grave a mim e deixa um mandrião desta categoria à solta, com saúde para dar e vender?" Arregalou os olhos. "Quando penso nisso, até me irrito!"

"O pai não pode ver as coisas assim..."

"Mas é uma injustiça! Eu sei que não posso encarar as coisas deste modo, que chega a ser imoral desejar que o nosso mal se transfira para os outros, mas, enfim, quando me vejo assim neste estado e olho para a saúde que respira um tipo como o Chico da Pinga, desculpa lá mas não consigo deixar de me sentir zangado!"

"Eu percebo."

"Por outro lado, tenho consciência de que não devo permitir que este sentimento de revolta tome conta de mim." Tossiu. "Sinto que o meu tempo é agora precioso, percebes? Tenho de o aproveitar para me redirecionar, para rever as minhas prioridades, para dar importância ao que realmente tem importância, para esquecer o que é irrelevante e fazer as pazes comigo e com o mundo." Fez um gesto vago. "Passei demasiado tempo fechado em mim mesmo, ignorando a tua mãe, ignorando-te a ti, ignorando a tua mulher e a tua filha, de costas voltadas para tudo, exceto para a matemática que me apaixona. Agora que sei que posso morrer, sinto que passei pela vida como se estivesse anestesiado, como se dormisse, como se, na realidade, não a tivesse vivido. E isso também me revolta. Como pude ser assim tão estúpido?" Diminuiu o tom de voz, quase sussurrando. "É por isso que quero usar o pouco tempo que talvez me resta para fazer o que não fiz em tanto tempo. Quero viver a vida, abraçar o que é realmente importante, reconciliar-me com o mundo." Baixou a cabeça e olhou para o peito. "Mas não sei se isto que tenho dentro de mim me vai deixar."

Tomás não sabia o que dizer. Nunca ouvira o pai refletir sobre a vida e sobre a forma como a vivera, sobre os erros que cometera, sobre as pessoas que devia ter amado e das quais se escondera. No fundo, o pai falava-lhe da sua relação consigo, falava-lhe das brincadeiras que nunca tiveram, das histórias que não lhe lera na cama, dos pontapés na bola que não trocaram, de tudo o que não partilharam. Era também a sua relação com o filho que o pai agora indiretamente questionava. Ficou, por isso, sem saber como lhe responder; sentiu apenas um enorme e pungente desejo de ter uma segunda oportunidade, de na próxima vida ser filho daquele pai e de aquele pai ser um verdadeiro pai para o filho. Sim, como seria bom ter uma segunda oportunidade.

"Talvez tenha mais tempo do que pensa", ouviu-se a dizer. "Talvez o nosso corpo morra, mas a alma sobreviva e o pai possa, numa reencarnação, corrigir os erros desta vida. O pai acredita nisso?"

"Em quê? Na reencarnação?"

"Sim. Acredita nisso?"

Manuel Noronha fez um sorriso triste.

"Gostaria de acreditar, claro. Quem é que, estando na minha posição, não gostaria de acreditar em tal coisa? A sobrevivência da alma. A possibilidade de ela reencarnar mais tarde em alguém e eu poder voltar a viver. Que idéia tão bonita." Abanou a cabeça. "Mas eu sou um homem de ciência e tenho o dever de não me deixar iludir."

"O que quer dizer com isso? Acha que não é possível a alma sobreviver?"

"Mas o que é isso da alma?"

"E... sei lá... é uma força vital, é um espírito que nos anima."

O velho matemático ficou a mirar o filho por um momento.

"Escuta, Tomás", disse. "Olha para mim. O que vês?"

"Uh... vejo o pai."

"Vês um corpo."

"Sim."

"É o meu corpo. Refiro-me a ele como se dissesse: é a minha televisão, é o meu carro, é a minha caneta. Neste caso, é o meu corpo. E algo que é meu, é uma propriedade minha." Encostou a palma da mão ao peito. "Mas se eu digo, o corpo é meu, o que eu estou a dizer é que eu não sou o corpo. O corpo é meu, não sou eu. Então, o que sou eu?" Colou o dedo à testa. "Eu sou os meus pensamentos, a minha experiência, os meus sentimentos. Isso sou eu. Eu sou uma consciência. Mas agora repara. Será que a minha consciência, este eu que sou eu, é a alma?"

"Uh... sim, suponho que sim."

"O problema é que este eu que sou eu é produto de substâncias químicas que me circulam pelo corpo, de transmissões elétricas entre neurônios, de heranças genéticas codificadas no meu ADN, de um sem-número de condicionalismos exteriores e intrínsecos que moldam este eu que sou eu. O meu cérebro é uma complexa máquina eletroquímica que funciona como um computador e a minha consciência, esta noção que eu tenho da minha existência, é uma espécie de programa. Percebes? De uma certa forma, e literalmente, os miolos são o hardware, a consciência o software. O que levanta naturalmente questões interessantes. Será que um computador tem alma? Se o ser humano é um computador muito complexo, será que ele próprio tem alma? Se todo o circuito morrer, a alma sobrevive? Sobrevive onde? Em que sítio?"

"Bem... uh... ergue-se do corpo e vai... uh... vai..."

"Vai para o céu?"

"Não, vai... sei lá, vai para uma outra dimensão."

"Mas de que é feita essa alma que se ergue do corpo? De átomos?"

"Não, acho que não. Deve ser uma substância incorpórea."

"Não tem átomos?"

"Julgo que não. É um... uh... um espírito."

"Bem, isso leva-me a formular uma outra pergunta", observou o matemático. "Será que, um dia, no futuro, a minha alma se lembra desta minha existência?"

"Sim, dizem que sim."

"Mas isso não faz sentido, pois não?"

"Por que não?"

"Repara, Tomás. Como é que nós organizamos a nossa consciência? Como é que eu sei que sou eu, que sou um professor de Matemática, que sou teu pai e marido da tua mãe? Que nasci em Castelo Branco e que já estou quase careca? Como é que eu sei tudo sobre mim?"

"O pai conhece-se por causa do que viveu, do que fez e do que disse, do que ouviu e viu e aprendeu."

"Exato. Eu sei que sou eu porque tenho memória de mim mesmo, de tudo o que me aconteceu, mesmo o que aconteceu há apenas um segundo. Eu sou a memória de mim mesmo. E onde se localiza essa memória?"

"No cérebro, claro."

"Nem mais. A minha memória encontra-se localizada no cérebro, armazenada em células. Essas células fazem parte do meu corpo. E é aqui que está a questão. Quando o meu corpo morre, as células da memória deixam de ser alimentadas por oxigênio e morrem também. Apaga-se assim toda a minha memória, a lembrança do que eu sou. Se assim é, como raio pode a alma lembrar-se da minha vida? Se a alma não tem átomos, não pode ter células da memória, não é? Por outro lado, as células onde a memória da minha vida se encontrava gravada já morreram. Nessas condições, como é que a alma se lembra do que quer que seja? Não achas tudo isso um pouco sem sentido?"

"Mas o pai fala como se nós fôssemos todos umas máquinas, uns computadores." Abriu as mãos, como quem expõe uma evidência. "Eu tenho uma novidade para lhe dar. Nós não somos computadores, somos gente, somos seres vivos."

"Ah, sim? E qual é a diferença entre os dois?"

"Bem, nós pensamos, sentimos, vivemos. Os computadores não."

"E tens a certeza de que somos mesmo diferentes?"

"Então não somos, pai? Os seres vivos são biológicos, os computadores não passam de circuitos."

Manuel Noronha ergueu o rosto para cima, como se estivesse a falar para Alguém.

"E tirou este rapaz um doutoramento numa universidade..."

Tomás hesitou.

"Por que diz isso? Eu disse algum disparate?"

"O que disseste, filho, é o que qualquer biólogo diria, fica descansado. Mas, se perguntares a um biólogo o que é a vida, ele vai-te responder mais ou menos assim: a vida é um conjunto de processos complexos baseados no átomo de carbono." Ergueu o indicador. "Atenção. Mesmo o mais lírico dos biólogos reconhece, no entanto, que a expressão-chave desta definição não é átomo de carbono, mas processos complexos. É verdade que todos os seres vivos que conhecemos são constituídos por átomos de carbono, mas não é isso verdadeiramente o que é estruturante para a definição da vida. Há bioquímicos que admitem que as primeiras formas de vida na Terra não foram baseadas nos átomos de carbono, mas nos cristais. Os átomos são apenas a matéria que torna a vida possível. Não interessa se é o átomo A ou o átomo B. Imagina que eu tenho o átomo A na cabeça e que, por algum motivo, ele é substituído pelo átomo B. Será que eu deixo de ser eu só por esse motivo?" Abanou a cabeça. "Não me parece. O que faz com que eu seja eu é um padrão, uma estrutura de informação. Ou seja, não são os átomos, é a forma como os átomos se organizam." Tossiu. "Sabes de onde é que vem a vida?"

"Vem de onde?"

"Vem da matéria."

"Ora, grande novidade!"

"Não estás a perceber onde é que eu quero chegar." Bateu com o dedo na mesa. "Os átomos que estão no meu corpo são exatamente iguais aos átomos que estão nesta mesa ou numa qualquer galáxia distante. Eles são todos iguais. A diferença está na forma como eles se organizam. O que é que achas que organiza os átomos de modo a formarem células vivas?"

"Uh... não sei."

"Será uma força vital? Será um espírito? Será Deus?"

"Se calhar..."

"Não, filho", disse, abanando a cabeça. "O que organiza os átomos de modo a formarem células vivas são as leis da física. É essa a questão central. Repara, como pode um conjunto de átomos inanimados formar um sistema vivo? A resposta está na existência de leis de complexidade. Todos os estudos mostram que os sistemas se organizam espontaneamente, de modo a criarem sempre estruturas cada vez mais complexas, em obediência a leis da física e exprimindo-se por equações matemáticas. Houve até um físico que ganhou o Prêmio Nobel por demonstrar que as equações matemáticas por detrás das reações químicas inorgânicas são semelhantes às equações que regem os padrões de comportamento simples de sistemas biológicos avançados. Ou seja, os organismos vivos são, na verdade, o produto de uma incrível complexificação dos sistemas inorgânicos. E essa complexificação não resulta da atividade de uma qualquer força vital, mas da organização espontânea da matéria. Uma molécula, por exemplo, pode ser constituída por um milhão de átomos

ligados de uma forma muito específica e complicada, e a sua atividade é controlada por estruturas químicas tão complexas que se assemelham a uma cidade. Entendes onde eu quero chegar?"

"Hmm... sim."

"O segredo da vida não está nos átomos que constituem a molécula, está na sua estrutura, na sua organização complexa. Essa estrutura existe porque obedece a leis de organização espontânea da matéria. E, da mesma maneira que a vida é o produto da complexificação da matéria inerte, a consciência é o produto da complexificação da vida. A complexidade da organização é que é a questão-chave, não é a matéria." Abriu uma gaveta e pegou num livro de receitas, que abriu, exibindo o interior. "Estás a ver estas letras? Estão impressas com que cor de tinta?"

"Preta."

"Imagina que, em vez de tinta preta, o tipógrafo utilizava tinta roxa." Fechou o livro e acenou com ele. "Será que a mensagem deste livro deixaria de ser a mesma?"

"Claro que não."

"É evidente que não. O que faz a identidade deste livro não é a cor da tinta das letras, é uma estrutura de informação. Não importa que a tinta seja preta ou roxa, importa é o conteúdo informativo do livro, a sua estrutura. Posso ler um Guerra e Paz impresso com fonte Times New Roman e outro Guerra e Paz de uma editora diferente impresso com fonte Arial, mas o livro será sempre o mesmo. É, em qualquer circunstância, o Guerra e Paz de Leo Tolstoi. Pelo contrário, se tiver um Guerra e Paz e um Anna Karenina impressos com a mesma fonte, por exemplo Times New Roman, isso não fará com que os dois livros se tornem a mesma coisa, pois não? O que é estruturante, pois, não é a fonte nem a cor da tinta das letras, é a estrutura do texto, a sua semântica, a sua organização. O mesmo se passa com a vida. Não importa se a vida é baseada no átomo de carbono ou em cristais ou em qualquer outra coisa. O que faz a vida é uma estrutura de informação, é uma semântica, é uma organização complexa. Eu chamo-me Manuel e sou professor de Matemática. Podem-me tirar o átomo A e meter o átomo B no corpo, mas, desde que esta informação seja preservada, desde que esta estrutura se mantenha intacta, eu continuo a ser eu. Podem-me mudar todos os átomos e substituí-los por outros, que eu continuo a ser eu. Aliás, já está provado que, ao longo da vida, vamos mesmo mudando quase todos os átomos. E, no entanto, eu continuo a ser eu. Peguem no Benfica e mudem-lhe todos os jogadores. Mas o Benfica permanece, continua a ser o Benfica, independentemente de jogar este ou aquele jogador. O que faz o Benfica não são os jogadores A ou B, é um conceito, é uma semântica, é uma estrutura de informação. O mesmo se passa com a vida. Não interessa qual o átomo que, num dado momento, preenche a estrutura. O que interessa é a estrutura em si. Desde que os átomos viabilizem a estrutura de informação que define a minha identidade e as funções dos meus órgãos, a vida é possível. Entendeste?"

"Sim."

"A vida é uma muito complexa estrutura de informação e todas as suas atividades envolvem processamento de informação." Tossiu. "Esta definição, no entanto, tem uma profunda consequência. É que, se o que constitui a vida é um padrão, uma semântica, uma estrutura de informação que se desenvolve e interage com o mundo em redor, nós, feitas as contas, somos uma espécie de programa. A matéria é o hardware, a nossa consciência é o software." Encostou o dedo à testa. "Nós somos um muito complexo e avançado programa de computador."

"E qual é o programa desse... uh... computador?"

"A sobrevivência dos genes. Há biólogos que definiram o ser humano como uma máquina de sobrevivência, uma espécie de robô programado cegamente para preservar os genes. Eu sei que, assim postas as coisas, parece chocante, mas é isso que nós somos. Computadores programados para preservar genes."

"Por essa definição, um computador é um ser vivo."

"Sem dúvida. É um ser vivo que não é construído por átomos de carbono."

"Mas isso não é possível!"

"Por que não?"

"Porque um computador limita-se a reagir a um programa pré-definido."

"Que é o que fazem todos os seres vivos baseados nos átomos de carbono", devolveu o pai. "O teu problema é que um computador é uma máquina que funciona na base do estímulo-resposta programada, não é?"

"Uh... sim."

"E o cão de Pavlov? Não funciona na base do estímulo-resposta programada? E uma formiga? E uma planta? E um gafanhoto?"

"Bem... sim, mas é... diferente."

"Não é nada diferente. Se conhecermos o programa do gafanhoto, se soubermos o que o atrai e o repele, o que o motiva e o que o assusta, poderemos prever todo o seu comportamento. Os gafanhotos têm programas relativamente simples. Se acontecer X, eles reagem de maneira A. Se acontecer Y, eles reagem de maneira B. Exatamente como uma máquina concebida por nós."

"Mas os gafanhotos são máquinas naturais. Os computadores são máquinas artificiais."

Manuel olhou em redor da cozinha, à procura de uma idéia. A sua atenção fixou-se na janela, numa árvore erguida no passeio em frente, para onde um pardal esvoaçou.

"Olha ali para as aves. Os ninhos que eles constroem nas árvores são naturais ou artificiais?"

"São naturais, claro."

"Então tudo o que o homem faz também é natural. Nós, que temos um conceito antropocêntrico da natureza, é que dividimos tudo entre coisas naturais e coisas artificiais, sendo que definimos que as artificiais são as feitas pelos homens e as naturais feitas pela natureza, pelas plantas e pelos animais. Mas isso é uma convenção humana. A verdade é que, se o homem é um animal, tal como as aves, então é uma criatura natural, certo?"

"Sim."

"Sendo uma criatura natural, tudo o que ele faz é natural. Logo, as suas criações são naturais, da mesma maneira que o ninho feito pelas aves é uma coisa natural." Tossiu. "O que eu quero dizer é que tudo na natureza é natural. Se o homem é um produto da natureza, então tudo o que ele faz também é natural. Apenas por uma convenção de linguagem se estabeleceu que os objetos que ele cria são artificiais, quando, na verdade, são tão naturais quanto os objetos que as aves criam. Logo, sendo criações de um animal natural, os computadores, tais como os ninhos, são naturais."

"Mas não têm inteligência."

"Nem as aves ou os gafanhotos têm." Fez uma careta. "Ou melhor, as aves, os gafanhotos e os computadores têm inteligência. O que eles não têm é a nossa inteligência. Mas, por exemplo, no caso dos computadores, nada garante que, daqui a cem anos, eles não venham a ter uma inteligência igual ou superior à nossa. E, se atingirem o nosso grau de inteligência, podes estar certo de que desenvolverão emoções e sentimentos e tornar-se-ão conscientes."

"Isso não acredito."

"Que possam ter emoções e tornarem-se conscientes?"

"Sim. Não acredito nisso."

Manuel Noronha foi assaltado por um súbito ataque de tosse, uma tosse tão cavada que parecia quase expulsar os pulmões pela boca. O filho ajudou-o a recompor-se, oferecendo-lhe água e procurando acalmá-lo. Quando o ataque morreu, Tomás olhou para o pai com ar apreensivo.

"O pai está bem?"

"Sim."

"Quer ir deitar-se um pouco? Se calhar é..."

"Eu estou bem, deixa estar", atalhou o velho matemático.

"Veja lá."

"Eu estou bem, eu estou bem", insistiu, recuperando o fôlego. "Onde é que íamos?"

"Oh, não interessa."

"Não, não. Eu quero explicar-te isto, é importante."

Tomás hesitou e fez um esforço de memória.

"Uh... dizia-lhe eu que não acredito que os computadores possam ter emoções e consciência."

"Ah, sim", exclamou Manuel, recuperando o fio do raciocínio. "Achas que os computadores não podem ter emoções, não é?"

"É. Nem emoções nem consciência."

"Pois estás muito enganado." Inspirou fundo, normalizando a respiração. "Sabes, as emoções e a consciência resultam de se atingir um determinado grau de inteligência. Ora, o que é a inteligência? Hã?"

"A inteligência é a capacidade de fazer raciocínios complexos, acho eu."

"Exato. Ou seja, a inteligência é uma forma de elevada complexidade. E não é preciso atingir-se o grau da inteligência humana para se criar a consciência. Por exemplo, os cães são muito menos inteligentes do que os homens, mas, se perguntares ao dono de um cão se o seu cão tem emoções e consciência das coisas, ele dir-te-á, sem hesitar, que sim. O cão tem emoções e consciência. Logo, as emoções e a consciência são mecanismos que emergem a partir de um determinado grau de complexidade de inteligência."

"Portanto, o pai acha que os computadores, se atingirem esse grau de complexidade, tornar-se-ão emotivos e conscientes?"

"Sem dúvida."

"Custa-me a acreditar nisso."

"Custa-te a ti e custa à maior parte das pessoas que não está dentro do problema. A idéia de máquinas possuírem consciência parece chocante ao comum dos mortais. E, no entanto, a maior parte dos cientistas que lida com este problema acredita ser possível tornar consciente uma mente simulada."

"Mas o pai acha que é mesmo possível tornar um computador inteligente? Acha que é possível que ele pense por si só?"

"Claro que é. Aliás, os computadores já são inteligentes. São mais inteligentes do que uma minhoca, por exemplo." Ergueu o dedo. "Não são é tão inteligentes como os seres humanos, mas são mais inteligentes do que uma minhoca. Ora, o que é que separa a inteligência do ser humano da inteligência da minhoca? A complexidade. O nosso cérebro é muito mais complexo do que o da minhoca. Obedece aos mesmos princípios, ambos têm sinapses e ligações, só que o cérebro humano é incomensuravelmente mais complexo do que o da minhoca." Bateu na parte lateral da cabeça. "Tu sabes o que é um cérebro?"

"É o que temos cá dentro do crânio."

"Um cérebro é uma massa orgânica que funciona exatamente como um circuito eléctrico. Em vez de ter fios, tem neurônios, em vez de ter chips, tem miolos, mas é precisamente a mesma coisa. O seu funcionamento é determinista. As células nervosas disparam um impulso elétrico em direcção ao braço com uma determinada ordem, segundo um padrão de correntes elétricas pré-definidas. Um diferente padrão produziria a emissão de um diferente impulso. Exatamente como um computador. O que eu quero dizer é que, se nós conseguirmos tornar o cérebro do computador muito mais complexo do que é atualmente, poderemos pô-lo a funcionar ao nosso nível."

"E é possível torná-los tão inteligentes quanto os seres humanos?"

"Em teoria, nada o impede. Repara, os computadores já batem os seres humanos na velocidade de cálculo. Onde eles apresentam enormes deficiências é na criatividade. Um dos pais dos computadores, um inglês chamado Alan Turing, estabeleceu que, no dia em que conseguirmos manter com um computador uma conversa exatamente igual à que teríamos com qualquer outro ser humano, então é porque o computador pensa, é porque o computador tem uma inteligência ao nosso nível."

Tomás adptou uma expressão cética.

"Mas isso é mesmo possível?"

"Bem... uh... é verdade que, durante muito tempo, os cientistas acharam que não, devido a um complicado problema matemático." Tossiu. "Sabes, nós, os matemáticos, sempre acreditamos que Deus é um matemático e que o universo está estruturado segundo equações matemáticas. Essas equações, por mais complexas que pareçam, são todas elas resolúveis. Se não se consegue resolver uma equação, isso não se deve ao fato de ela ser irresolúvel, mas às limitações do intelecto humano em resolvê-la."

"Não estou a ver onde quer chegar..."

"Já vais perceber", prometeu o pai. "A questão dos computadores poderem ou não adquirir consciência está ligada a um dos problemas da matemática, a questão dos paradoxos autoreferenciais. Por exemplo, repara no que eu vou dizer. Eu só digo mentiras. Notas aqui alguma anomalia?"

"Em quê?"

"Nesta frase que eu acabei de formular. Eu só digo mentiras."

Tomás soltou uma gargalhada.

"É uma grande verdade."

O pai olhou-o com ar condescendente.

"Ora aí está. Se é verdade que eu só digo mentiras, então, tendo dito uma verdade, eu não digo só mentiras. Se a frase é verdadeira, ela própria contém uma contradição dentro de si." Agitou as sobrancelhas, satisfeito consigo próprio. "Durante muito tempo, pensou-se que este era um mero problema semântico, resultante das limitações da língua humana. Mas, quando este enunciado foi transposto para uma formulação matemática, a contradição manteve-se. Os matemáticos passaram muito tempo a tentar resolver o problema, sempre na convicção de que ele era resolúvel. Essa ilusão foi desfeita em 1931 por um matemático chamado Kurt Gódel, que formulou dois teoremas,

chamados da Incompletude. Os teoremas da Incompletude são considerados um dos maiores feitos intelectuais do século XX e deixaram os matemáticos em estado de choque." Hesitou. "É um pouco complicado explicar em que consistem estes teoremas, mas é importante que fiques com..."

"Tente."

"Tento o quê? Explicar os teoremas da Incompletude?"

"Sim."

"Não é fácil", disse, abanando a cabeça. Encheu o peito de ar, como se procurasse ganhar coragem. "A questão essencial é que Gódel provou que não existe nenhum procedimento geral que demonstre a coerência da matemática. Há afirmações que são verdadeiras, mas não são demonstráveis dentro do sistema. Esta descoberta teve profundas consequências, ao revelar as limitações da matemática, expondo assim uma sutileza desconhecida na arquitetura do universo."

"Mas o que tem isso a ver com os computadores?"

"É muito simples. Os teoremas de Gódel sugerem que, por mais sofisticados que sejam, os computadores vão sempre enfrentar limitações. Apesar de não conseguir mostrar a coerência de um sistema matemático, o ser humano consegue perceber que muitas afirmações dentro do sistema são verdadeiras. Mas o computador, colocado perante tal contradição irresolúvel, bloqueará. Logo, os computadores jamais serão capazes de igualar os seres humanos."

"Ah, já percebi", exclamou Tomás. Fez um ar satisfeito. "Então o pai está-me a dar razão..."

"Não necessariamente", disse o velho matemático. "A grande questão é que nós podemos apresentar ao computador uma fórmula que sabemos ser verdadeira, mas que o computador não pode provar que é verdadeira. É verdade. Mas também é verdade que o computador nos pode fazer o mesmo. A fórmula só não é demonstrável para quem está a trabalhar dentro do sistema, entendes? Quem estiver fora do sistema consegue provar a fórmula. Isso é válido para um computador como para um ser humano. Conclusão: é possível um computador ser tão ou mais inteligente quanto as pessoas."

Tomás suspirou.

"Tudo isso para provar o quê?"

"Tudo isso para te provar que não passamos de computadores muito sofisticados. Achas que os computadores podem vir a ter alma?"

"Que eu saiba, não."

"Então, se nós somos computadores muito sofisticados, também não podemos ter. A nossa consciência, as nossas emoções, tudo o que sentimos é resultado da sofisticação da nossa estrutura. Quando morrermos, os chips da nossa memória e da nossa inteligência irão desaparecer e nós apagamo-nos." Respirou fundo e encostou-se na cadeira. "A alma, meu querido filho, não passa de uma invenção, de uma maravilhosa ilusão criada pelo nosso ardente desejo de escaparmos à inevitabilidade da morte."




Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A teoria do Tudo

Fique atento: O português desse texto está escrito no português de Portugal.

A iraniana passou as mãos pelos seus belos cabelos negros, ponderando o melhor modo de lhe explicar as coisas.

"Vamos lá a ver, sabe ao menos o que é a Teoria da Relatividade..."

"Claro. Isso é elementar."

"Digamos que a busca da Teoria de Tudo começou com a Teoria da Relatividade. Até Einstein, a física assentava no trabalho de Newton, que dava perfeita conta do recado na explicação do funcionamento do universo tal como ele é percepcionado pelos seres humanos. Mas havia dois problemas relacionados com a luz que não se conseguia resolver. Um era saber por que razão um objeto aquecido emitia luz e o outro era perceber o valor constante da velocidade da luz."

"Devo então supor que foi Einstein quem fez luz sobre o problema da luz", gracejou Tomás.

"Nem mais. Einstein concluiu em 1905 a sua Teoria da Relatividade Restrita, onde estabeleceu uma ligação entre o espaço e o tempo, dizendo que ambos são relativos. Por exemplo, o tempo muda porque há movimento no espaço. A única coisa que não é relativa, mas absoluta, é a velocidade da luz. Ele previu que, a velocidades próximas da luz, o tempo abranda e as distâncias contraem-se."

"Isso já eu sei."

"Ainda bem, porque assim não perco muito tempo com isto. A questão é que, se tudo é relativo, com excepção da velocidade da luz, então até a massa e a energia são relativas. Mais do que relativas, massa e energia são as duas faces de uma mesma moeda."

"Essa não é aquela famosa equação?"

Ariana rabiscou a equação numa folha de rascunho.


E = mc2


"Sim. Energia é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz."

"Se bem me lembro, essa é a equação que está por detrás das bombas atômicas."

"Exato. Como você sabe, a velocidade da luz é enorme. O quadrado da velocidade da luz é um número tão grande que isto implica que uma minúscula porção de massa contém uma brutal quantidade de energia. Por exemplo, você pesa para aí uns oitenta quilos, não pesa?"

"Mais ou menos."

"Isso significa que você contém no seu corpo matéria com energia suficiente para abastecer de eletricidade uma pequena cidade durante uma semana inteira. A única dificuldade é transformar essa matéria em energia."

"Isso não tem a ver com a força forte que mantém unido o núcleo dos átomos?"

Ariana inclinou a cabeça e ergueu o sobrolho.

"Afinal você sempre sabe umas coisinhas de física..."

"Uh... devo ter lido isso algures."

"Pois. Bem, fique então com a idéia de que energia e massa são as duas faces da mesma moeda. Isto significa que se pode transformar uma coisa na outra, ou seja, energia transformar-se em matéria ou matéria em energia."

"Está a dizer que é possível fazer uma pedra a partir da energia?"

"Sim, teoricamente isso é possível, embora a transformação de energia em massa seja algo que nós normalmente não observamos. Mas acontece. Por exemplo, se um objecto se aproximar da velocidade da luz, o tempo contrai-se e a sua massa aumenta. Nessa situação, a energia do movimento dá lugar à massa."

"Isso já alguma vez foi observado?"

"Sim. No Acelerador de Partículas do CERN, na Suíça. Os electrões foram acelerados a tal velocidade que aumentaram quarenta mil vezes de massa. Há mesmo fotografias do rasto de protões depois de choques, veja lá."

"Caramba."

"É, aliás, por isso que nenhum objeto pode atingir a velocidade da luz. Se o fizesse, a sua massa tornar-se-ia infinitamente grande, o que requereria uma energia infinita para movimentar esse objeto. Ora, isso não pode ser, não é? Daí que se diga que a velocidade da luz é a velocidade limite no universo. Nada a pode igualar, porque, se um corpo a igualasse, a sua massa tornar-se-ia infinitamente grande."

"Mas a luz é formada por quê?"

"Por partículas chamadas fotões."

"E essas partículas não aumentam de massa quando andam à velocidade da luz?"

"Aí é que está. Os fotões são partículas sem massa, encontram-se em estado de energia pura e nem sequer experimentam a passagem do tempo. Como andam à velocidade da luz, para eles o universo é intemporal. Do ponto de vista dos fotões, o universo nasce, cresce e morre no mesmo instante."

"Incrível."

Ariana bebeu um golo de sumo de laranja.

"O que, se calhar, você não sabe é que não há uma Teoria da Relatividade, mas duas."

"Duas?"

"Sim. Einstein concluiu a Teoria da Relatividade Restrita em 1905, na qual explica uma série de fenômenos físicos, mas não a gravidade. O problema é que a Relatividade Restrita entrou em conflito com a descrição clássica da gravidade e era preciso resolver isso. Newton acreditava que uma alteração repentina de massa implicava uma alteração instantânea da força de gravidade. Mas isso não pode ser, uma vez que tal requer que exista algo mais veloz do que a luz. Suponhamos que o Sol explodia neste preciso momento. A Relatividade Restrita prevê que tal acontecimento só oito minutos depois será sentido na Terra, uma vez que esse é o tempo que a luz leva a fazer a viagem entre o Sol e a Terra. Mas Newton julgava que o efeito seria sentido instantaneamente. No exato momento em que o Sol explodisse, a Terra sentiria o efeito desse acontecimento. Ora, isso não é possível, dado que nada anda mais depressa do que a luz, não é? Para solucionar este e outros problemas, Einstein concluiu em 1915 a Teoria da Relatividade Geral, que resolveu as questões da gravidade e estabeleceu que o espaço é curvado. Quanto mais massa tem um objeto, mais curvado é o espaço em torno dele e, consequentemente, maior é a força de gravidade que exerce. Por exemplo, o Sol exerce mais força de gravidade sobre um objeto do que a Terra porque dispõe de muito mais massa, entendeu?"

"Hmm... não muito bem. O espaço curva-se? O que quer dizer com isso?"

Ariana abriu os braços.

"Faça de conta, Tomás, que o espaço é um lençol esticado no ar entre nós dois. Imagine que pomos uma bola de futebol no meio. O que acontece? O lençol curva-se em torno da bola, não é? Se eu atirar um berlinde para o lençol, ele vai ser atraído para a bola de futebol, não vai? No universo passa-se a mesma coisa. O Sol é tão grande que curva o espaço em torno de si. Se um objeto exterior se aproximar devagar, vai embater no Sol. Se um objeto se aproximar a uma certa velocidade, como a Terra, começará a andar à volta do Sol, sem cair nele nem fugir dele. E se um objeto andar a muita velocidade, como um fotão de luz, ao aproximar-se do Sol vai curvar um bocadinho a sua trajetória mas conseguirá fugir e prosseguir a sua viagem. No fundo, é isto o que diz a Relatividade Geral. Todos os objetos distorcem o espaço e, quanto mais massa tiver um objeto, mais distorcerá o espaço em torno de si. Como o espaço e o tempo são duas faces da mesma moeda, um pouco como a energia e a matéria, isto significa que os objetos também distorcem o tempo. Quanto mais massa tiver um objeto, mais lento será o tempo perto de si."

"É tudo muito estranho", observou Tomás. "Mas o que tem isso a ver com o manuscrito de Einstein?"

"Tudo ou nada, não sei. Mas é importante que você perceba que o manuscrito foi concebido quando Einstein estava a tentar estabelecer a Teoria de Tudo."

"Ah, sim. Essa é mais uma teoria de Einstein?"

"Sim."

"As duas da Relatividade não chegaram, é?"

"Einstein pensou inicialmente que sim, mas, de repente, deu com o nariz na Teoria Quântica."

Ariana inclinou a cabeça no seu jeito característico. "Sabe o que é a Teoria Quântica?"

"Bem... uh... já ouvi falar, sim, mas os pormenores... enfim."

A iraniana riu-se.

"Não fique complexado", exclamou. "Mesmo alguns cientistas que desenvolveram a Teoria Quântica nunca chegaram a entendê-la muito bem."

"Ah, bom. Então estou mais descansado."

"A questão é esta. A física de Newton é adequada para explicar o nosso mundo quotidiano. Quando constroem uma ponte ou põem um satélite a circular à volta da Terra, os engenheiros recorrem à física de Newton e de Maxwell. Os problemas desta física clássica só emergem quando estamos a lidar com aspectos que não fazem parte da nossa experiência diária, como por exemplo velocidades extremas ou o mundo das partículas. Para tratar os problemas das grandes massas e da grande velocidade, apareceram as duas teorias de Einstein, chamadas da Relatividade. E, para lidar com o mundo das partículas, surgiu a Teoria Quântica."

"Portanto, a Relatividade é para os grandes objetos e a Quântica é para os pequenos objetos."

"Isso." Fez uma careta. "Embora importe realçar que o mundo das micropartículas tem manifestações macroscópicas, como é evidente."

"Claro. Mas quem é que desenvolveu a Quântica?"

"A Teoria Quântica nasceu em 1900, na sequência de um trabalho de Max Planck sobre a luz emitida por corpos quentes. Foi depois desenvolvida por Niels Bohr, que concebeu o mais conhecido modelo teórico dos átomos, aquele que tem os electrões a orbitar o núcleo da mesma maneira que os planetas orbitam o Sol."

"Tudo isso é conhecido."

"Pois é. Mas o que é menos conhecido são os comportamentos bizarros das partículas. Por exemplo, alguns físicos concluíram que as partículas subatómicas podem ir do estado de energia A ao estado de energia B sem passarem pela transição entre esses dois estados."

"Sem passarem pela transição entre os dois estados? Como assim?"

"É muito estranho e polêmico. Chama-se a isso um salto quântico. É como uma pessoa a subir os degraus de uma escada. Nós passamos de um degrau para o outro sem percorrermos o degrau intermédio, não é? Não há meio degrau. Saltamos de um para o outro. Há quem defenda que, no mundo quântico, as coisas também se passam assim ao nível da energia. Vai-se de um estado para o outro sem passar pelo estado intermédio."

"Mas isso é bizarro."

"Muito. Nós sabemos que as micropartículas dão saltos. Isso é consensual. O que se passa é que há quem ache que, quando estamos a falar do mundo subatómico, o espaço deixa de ser contínuo e torna-se granuloso. Dão-se saltos sem se passar pelo estado intermédio." Nova careta. "Devo dizer que não acredito nisso e nunca encontrei qualquer prova ou indício de que assim seja."

"Realmente, essa idéia é... é estranha."

Ariana ergueu o indicador.

"Mas há mais. Descobriu-se que a matéria se manifesta ao mesmo tempo por partículas e ondas. Tal como espaço e tempo ou energia e massa são duas faces da mesma moeda, ondas e partículas são as duas faces da matéria. O problema emergiu quando se teve de transformar isto numa mecânica."

"Mecânica?"

"Sim, a física tem uma mecânica, que serve para prever os comportamentos da matéria. Nos casos da física clássica e da Relatividade, a mecânica é determinista. Se, por exemplo, nós soubermos onde está a Lua, em que direcção ela circula e a que velocidade, nós seremos capazes de prever a sua evolução futura e passada. Se a Lua circula para a esquerda a mil quilômetros por hora,

daqui a uma hora estará mil quilómetros à esquerda. É isto a mecânica. Consegue-se prever a evolução dos objetos, desde que se saiba a respectiva velocidade e posição. Tudo muito simples. Mas, no mundo quântico, descobriu-se que as coisas funcionam de uma maneira diferente. Quando sabemos bem a posição de uma partícula, não conseguimos perceber qual a sua velocidade exata. E quando conhecemos bem a velocidade, não podemos determinar a posição exata. Chama-se a isso o Princípio da Incerteza, uma idéia que foi formulada em 1927 por Werner Heisenberg. O Princípio da Incerteza estabelece que podemos saber com rigor a velocidade ou a posição de uma partícula, mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo."

"Então como se sabe a evolução de uma partícula?"

"É esse o problema. Não se sabe. Eu posso saber qual a posição e velocidade da Lua, e assim sou capaz de prever todos os seus movimentos passados e futuros. Mas não tenho maneira de determinar com exatidão a posição e a velocidade de um electrão, pelo que não consigo prever os seus movimentos passados e futuros. É essa a incerteza. Para resolver isso, a mecânica quântica recorreu ao cálculo de probabilidades. Se um electrão tiver de escolher entre dois buracos por onde passar, há cinquenta por cento de probabilidades de o electrão passar pelo buraco da esquerda e outros cinquenta por cento pelo da direita."

"Parece uma boa maneira de resolver esse problema."

"Pois é. Mas Niels Bohr complicou a coisa e disse que o electrão passa pelos dois buracos ao mesmo tempo. Passa pelo da esquerda e pelo da direita."

"Como?"

"É como eu lhe estou a dizer. Ao escolher entre duas rotas, o electrão passa pelas duas em simultâneo, pelo buraco da esquerda e pelo da direita. Ou seja, está nos dois sítios ao mesmo tempo!"

"Mas isso não é possível."

"E, no entanto, é o que a Teoria Quântica prevê. Por exemplo, se pusermos um electrão numa caixa dividida em dois lados, o electrão estará nos dois lados ao mesmo tempo em forma de onda. Quando espreitamos a caixa, a onda desfaz-se imediatamente e o electrão transforma-se em partícula num dos lados. Se não olharmos, o electrão permanecerá nos dois lados ao mesmo tempo sob a forma de onda. Mesmo que os dois lados sejam separados e colocados a milhares de anos-luz de distância um do outro, o electrão continuará nos dois lados ao mesmo tempo. Só quando espreitarmos para um dos lados é que o electrão decidirá qual o lado onde vai ficar."

"Só quando nós espreitamos é que ele se decide?", perguntou Tomás com ar incrédulo. "Que conversa é essa?"

"O papel do observador foi estabelecido inicialmente pelo Princípio da Incerteza. Heisenberg concluiu que nunca poderemos saber com precisão e em simultâneo qual a posição e velocidade de uma partícula devido à presença do observador. A teoria evoluiu até ao ponto de ter havido quem considerasse que o electrão só decide em que lugar está quando existe um observador."

"Isso não faz sentido nenhum..."

"Foi o que também disseram os outros cientistas, incluindo Einstein. Como o cálculo passou a ser probabilístico, Einstein declarou que Deus não jogava aos dados, isto é, a posição de uma partícula não podia estar dependente da presença de observadores e, sobretudo, de cálculos de probabilidade. A partícula ou está num sítio ou está no outro, não pode estar nos dois ao mesmo tempo. A incredulidade foi tal que houve até um outro físico, chamado Schrödinger, que concebeu uma situação paradoxal para pôr a nu este absurdo. Ele imaginou que era colocado um gato numa caixa com um frasco fechado de cianeto. Um processo quântico poderia levar um martelo, com uma probabilidade de cinquenta por cento, a quebrar o frasco ou não. De acordo com a teoria quântica, os dois acontecimentos igualmente prováveis ocorreriam em simultâneo enquanto a caixa permanecesse encerrada, fazendo com que o gato estivesse simultaneamente vivo e morto, da mesma maneira que um electrão está simultaneamente nos dois lados da caixa enquanto não é observado. Ora, isso é um absurdo, não é?"

"Claro que é. Isso não faz sentido nenhum. Como é possível que essa teoria seja ainda

defendida?"

"É justamente isso o que Einstein pensava. O problema é que esta teoria, por muito bizarra que pareça, bate certo com todos os dados experimentais. Qualquer cientista sabe que, sempre que a matemática contradiz a intuição, a matemática tende a ganhar. Isso aconteceu, por exemplo, quando Copérnico disse que era a Terra que andava à volta do Sol e não o contrário. A intuição dizia que a Terra é que era o centro, uma vez que tudo parecia girar em torno da Terra. Perante o ceticismo de toda a gente, Copérnico apenas encontrou aliados entre os matemáticos, os quais, com as suas equações, constataram que só a possibilidade de a Terra andar à volta do Sol concordava com a matemática. Sabemos hoje que a matemática estava certa. Com as Teorias da Relatividade foi a mesma coisa. Há muitos elementos dessa teoria que são contra-intuitivos, como idéias de que o tempo dilata e outras bizarrias do gênero, mas a verdade é que esses conceitos são aceites pelos cientistas porque condizem com a matemática e com as observações da realidade. É o que acontece aqui. Não faz sentido dizer que um electrão está em dois sítios ao mesmo tempo enquanto não é observado, isso é contra-intuitivo. E, no entanto, bate certo com a matemática e com todas as experiências efectuadas."

"Ah, bom."

"Mas Einstein não se conformou com esta idéia, por uma razão muito simples. É que a Teoria Quântica começou por não condizer com a Teoria da Relatividade. Isto é, uma é boa para compreender o universo dos grandes objetos e a outra é eficiente na explicação do universo dos átomos. Mas Einstein achava que o universo não pode ser gerido por leis diferentes, umas deterministas para os grandes objectos e outras probabilísticas para os pequenos objectos. Tem de

haver um único conjunto de regras. Começou assim a busca de uma teoria unificadora que apresentasse as forças fundamentais da natureza como manifestações de uma força única. As suas Teorias da Relatividade reduziam a uma única fórmula todas as leis que regem o espaço, o tempo e a gravidade. Com a nova teoria ele procurava reduzir a uma única fórmula os fenômenos da gravidade e do electromagnetismo. Ele acreditava que a força que faz mover o electrão à volta do núcleo é do mesmo tipo da que faz mover a Terra à volta do Sol."

"Uma nova teoria, é?"

"Sim. Ele chamou-lhe a Teoria dos Campos Unificados. Era a sua versão da Teoria de Tudo."

"Ah."

"E era isso o que Einstein estava a desenvolver quando elaborou este manuscrito."

"Acha que A Fórmula de Deus tem ligação com essa busca, é?"

"Não sei", disse Ariana. "Talvez sim, talvez não."

"Mas, se é isso, que sentido faz manter tudo secreto?"

"Ouça, eu não sei se é isso. Eu já li o documento e ele é estranho, sabe? E a verdade é que foi o próprio Einstein quem decidiu mantê-lo em segredo. Se o fez é porque tinha bons motivos, não acha?"

Tomás cravou os olhos na iraniana, atento à sua reacção quando ouvisse a pergunta que tinha para lhe fazer.

"Se A Fórmula de Deus não tem ligação com a busca da Teoria de Tudo, tem ligação com quê?", perguntou. Fez uma expressão interrogativa. "Com armas nucleares?"

Ariana devolveu-lhe o olhar com intensidade.

"Vou fingir que não ouvi essa pergunta", disse ela, pronunciando cada sílaba muito devagar, com enorme intensidade. "E não volte a falar sobre isso, entendeu?" Colou o indicador à testa. "A sua segurança depende da sua inteligência."

O historiador estremeceu.

"A minha segurança?"




Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.