segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Lei 6 - Chame a atenção a qualquer preço

Julga-se tudo pelas aparências; o que não se vê não se conta. Não fique perdido no meio da multidão, destaque-se, fique visível a qualquer preço. Atraia a atenção das pessoas parecendo maior, mais colorido, mais misterioso do que as massas tímidas e amenas.

PARTE I: CERQUE O SEU NOME DE ESCÂNDALO E SENSACIONALISMO

Chame atenção sobre você criando uma imagem inesquecível, até controvertida. Faça escândalo. Faça qualquer coisa para parecer exagerado e brilhe mais do que todos ao seu redor. Não discrimine os diferentes tipos de atenção — qualquer espécie de notoriedade lhe trará mais poder. Que falem mal, mas falem de você. As multidões tendem a agir em conjunto. Se uma pessoa interrompe o que está fazendo para ver o seu mendigo colocando tijolos na rua, outras farão o mesmo. Elas se juntam como chumaços de poeira. Aí, então, um empurrãozinho, e elas entram no seu museu ou assistem ao seu show. Para criar uma multidão você tem que fazer alguma coisa diferente e excêntrica. Qualquer tipo de curiosidade serve, pois as multidões são atraídas magneticamente pelo inusitado e inexplicável. E uma vez tendo conquistado a atenção dela, não a abandone. Se ela se desviar para outras pessoas, fará isso às suas custas.

No início da sua ascensão até o topo, portanto, use toda a sua energia chamando a atenção. Mais importante: a qualidade da atenção é irrelevante. A pior coisa do mundo para o homem que quer a fama, a glória e, é claro, o poder, é ser ignorado. Brilhar mais do que as pessoas que estão ao seu redor não é uma habilidade inata. Tem de se aprender a chamar a atenção, “com tanta certeza quanto o ímã atrai o ferro”. No início da sua carreira, você deve associar o seu nome e reputação a uma qualidade, uma imagem, que o destacará dos outros. Esta imagem pode ser algo como um estilo de se vestir característico, ou um cacoete da personalidade que diverte as pessoas e elas comentam. Uma vez estabelecida a imagem, você tem uma aparência, um lugar no céu para a sua estrela.

É um erro comum imaginar que esta sua aparência peculiar não deva ser polêmica, que ser atacado é uma coisa ruim. Nada está mais longe da verdade. Para evitar ser um sucesso frustrado ou ter a sua notoriedade eclipsada por outro, você não deve discriminar entre tipos diferentes de atenção; no final, todos lhe serão favoráveis. A sociedade gosta de figuras exageradas, pessoas que se colocam acima da mediocridade geral. Não tenha medo, portanto, das qualidades que o tornam diferente dos outros e chamam atenção para você. Corteje a controvérsia, até o escândalo. É melhor ser atacado, até caluniado, do que permanecer ignorado. Todas as profissões obedecem a esta lei, e todos os profissionais devem ter um pouco de exibicionista. Se você se encontrar numa posição inferior, com pouca oportunidade de chamar atenção, um truque que funciona é atacar a pessoa mais visível, a mais famosa, a mais poderosa que encontrar. Um ataque difamador a uma pessoa em posição de poder teria um efeito semelhante. Lembre-se, entretanto, de usar essas táticas raramente depois de chamar a atenção do público, para não desgastá-la.

Uma vez em evidência, você deve sempre renovar, adaptar e variar o seu método de chamar a atenção. De outra forma, o público se cansa, se acostuma com você e volta os olhos para uma nova estrela. O jogo requer constante vigilância e criatividade.

Compreenda: as pessoas se sentem superiores àquelas cujas ações elas são capazes de prever. Se você lhes mostrar quem está no controle jogando contra as suas expectativas, ao mesmo tempo infunde respeito e retesa os fios da atenção que estão escapulindo.


PARTE II: CRIE UM AR DE MISTÉRIO

Em um mundo cada vez mais banal e familiar o que parece enigmático chama logo atenção. Nunca deixe claro demais o que você está fazendo ou vai fazer. Não revele todas as suas cartas. Um ar de mistério acentua a sua presença; também cria expectativa — todos estarão olhando para ver o que acontecerá em seguida. Use o mistério para enganar, seduzir e até assustar.

No passado, o mundo estava cheio de coisas aterrorizantes e desconhecidas — doenças, desastres, déspotas caprichosos, o próprio mistério da morte. O que não podíamos compreender, reimaginávamos na forma de mitos e espíritos. Com o passar dos séculos, todavia, conseguimos, por meio da ciência e da razão, dar luz à escuridão: o que era misterioso e proibido se tornou familiar e confortável. Mas esta luz tem um preço: num mundo cada vez mais banal, sem mais espaço para os seus mistérios e mitos, nós intimamente ansiamos por enigmas, pessoas ou coisas que não possam ser instantaneamente interpretadas, compreendidas, consumidas.

Este é o poder do misterioso: ele convida a várias interpretações, excita a nossa imaginação, nos seduz a acreditar que esconde algo maravilhoso. O mundo se tornou tão familiar, e seus habitantes tão previsíveis, que aquilo que estiver envolto em mistério quase sempre atrai a luz dos refletores e nos faz olhar. Não imagine que para criar um ar de mistério você tenha de ser magnífico e espantoso. O mistério que está entremeado no seu comportamento diário, e é sutil, tem esse poder de fascinar e atrair atenção. Lembre-se: as pessoas, em sua maioria, são francas, são como um livro aberto, raras se preocupam em controlar suas palavras ou imagem, e são irremediavelmente previsíveis. Contendo-se apenas, ficando em silêncio, pronunciando de vez em quando frases ambíguas, aparentando deliberadamente incoerência e sutil excentricidade, você emanará uma aura de mistério. E as pessoas ao redor, tentando constantemente interpretar você, ampliarão essa aura.

Artistas e charlatões compreendem o elo vital entre ser misterioso e atrair o interesse.

Um ar de mistério pode fazer o medíocre parecer inteligente e profundo. É muito fácil — fale pouco sobre o seu trabalho, provoque e excite com comentários sedutores, até contraditórios, depois recue e deixe que os outros tentem entender. Pessoas misteriosas colocam os outros numa espécie de situação inferior — a de tentar entendê-las. Em graus controláveis, elas também evocam o medo que envolve tudo que é incerto ou desconhecido. Todos os grandes líderes sabem que uma aura de mistério chama atenção e cria uma presença intimidante.

Se a sua posição social o impede de envolver totalmente seus atos em mistério, você deve pelo menos aprender a se fazer menos óbvio. De vez em quando, aja de uma forma que não combine com a idéia que as outras pessoas têm de você. Assim você mantém as pessoas ao seu redor na expectativa, provocando o tipo de atenção que o torna poderoso. Feita corretamente, a criação do enigma pode também atrair o tipo de atenção que inspira terror no seu inimigo.

Se você se vir numa armadilha, encurralado e na defensiva, tente uma experiência simples: faça algo que não possa ser facilmente explicado ou interpretado. Escolha uma ação simples, mas execute-a de uma forma que desestabilize o seu adversário, com muitas interpretações possíveis, tornando obscuras as suas intenções. Não seja simplesmente imprevisível (embora esta tática também possa dar certo — ver Lei 17).Vai parecer que a sua loucura não tem propósito, é sem pé nem cabeça, sem nenhuma explicação possível. Se você fizer isso certo, vai deixar todos tremendo de medo e as sentinelas abandonarão seus postos. Chame a isso de tática da “loucura fingida de Hamlet”, pois Hamlet a usa com grande efeito na peça de Shakespeare, assustando o padrasto Cláudio com seu comportamento enigmático. O misterioso faz a sua força parecer maior, o seu poder mais aterrorizante.

O INVERSO

No início da sua subida ao topo, você deve chamar atenção a todo custo, mas durante a subida você deve ir constantemente se adaptando. Não canse o público sempre com a mesma tática. Um ar de mistério funciona como uma maravilha para aqueles que precisam desenvolver uma aura de poder e se fazer notados, mas deve parecer uma atitude comedida e controlada. Não deixe que o seu ar de mistério se transforme lentamente numa reputação de trapaceiro. O mistério que você criar deve parecer um jogo, divertido e inofensivo. Reconheça quando está indo longe demais, e recue.

Há momentos em que a necessidade de atenção deve ser adiada, e quando a última coisa que se quer é o escândalo e a notoriedade. A atenção que você chama jamais deve ofender ou desafiar a reputação dos que estão acima de você — não, de maneira alguma, se eles estiverem seguros. Comparado com eles, você não só parecerá mesquinho como desesperado. É uma arte saber quando chamar a atenção e quando se retrair.

Por conseguinte, não pareça estar excessivamente querendo atenção, porque isso é sinal de insegurança, e insegurança afasta o poder. Compreenda que existem momentos em que não é interessante para você ser o centro das atenções. Na presença de um rei ou rainha, por exemplo, ou o equivalente, incline-se e fique na sombra; não entre em competição.



Quando você não se declara imediatamente, cria expectativas...... Misture um pouco de mistério em tudo, e o próprio mistério despertará a veneração. E quando você explicar, não seja muito explícito... Desta maneira, você imita o jeito divino quando faz os homens ficarem observando maravilhados. Baltasar Gracián, 1601-1658


Ostente e seja visto... O que não é visto é como se não existisse... Foi a luz que deu brilho a toda a criação. A exibição preenche muitos espaços vazios, encobre deficiências, e faz tudo renascer, especialmente se apoiada pelo mérito autêntico. Baltasar Gracián, 1601-1658


Se acontecer de o cortesão participar de uma luta num espetáculo publico como uma justa (...) deve assegurar que o seu cavalo esteja belamente ajaezado, que ele mesmo esteja adequadamente vestido, com divisas apropriadas e expedientes engenhosos para atrair o olhar dos espectadores em sua direção com tamanha certeza quanto o ímã atrai o ferro. Baidassare Castiglione, 1478-1529


Fonte: "As 48 leis do Poder", Robert Greene e Joost Elffers, Editora Rocco, 2000

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Lei 5 - Muito depende da reputação: dê a própria vida para defendê-la

A reputação é a pedra de toque do poder. Com a reputação apenas você pode intimidar e vencer; um deslize, entretanto, e você fica vulnerável, e será atacado por todos os lados. Torne a sua reputação inexpugnável. Esteja sempre alerta aos ataques em potencial e frustre-os antes que aconteçam. Enquanto isso, aprenda a destruir seus inimigos minando as suas próprias reputações. Depois afaste-se a deixa a opinião pública acabar com eles.

As pessoas que nos cercam, até nossos melhores amigos, serão sempre até um certo ponto misteriosas e inescrutáveis. Suas personalidades possuem nichos secretos que elas não revelam. Se ficarmos pensando muito nisso, o mistério dos outros pode ser uma coisa incômoda porque tornaria impossível para nós julgar realmente as outras pessoas. Portanto, preferimos ignorar este fato e julgar as pessoas pela aparência, pelo que é mais visível aos nossos olhos — roupas, gestos, palavras, atos. Na esfera social, as aparências são o barômetro de quase todos os nossos julgamentos, e você não deve se iludir acreditando em outra coisa. Um escorregão em falso, uma estranha ou repentina mudança na sua aparência, pode se mostrar desastroso. Esta é a razão da suprema importância de fazer e manter uma reputação que tenha sido criada por você mesmo. Essa reputação o protegerá do perigoso jogo das aparências, distraindo os olhos inquisidores dos outros e impedindo que eles saibam como você é realmente, e dando a você um certo controle sobre como o mundo o julga — uma posição poderosa. A reputação tem um poder mágico: com um só golpe da varinha, ela pode dobrar a sua força. Pode também fazer as pessoas fugirem de você em disparada. Se as mesmas ações parecem brilhantes ou horríveis, depende inteiramente da reputação de quem as praticou.

No início, você deve se esforçar para criar uma reputação por uma qualidade importante, seja generosidade, honestidade ou astúcia. Esta qualidade o colocará em evidência e fará com que falem de você. Aí, então, faça com que o maior número possível de pessoas conheça a sua reputação (sutilmente, entretanto: tome cuidado para construí-la aos poucos, e sobre bases firmes), e veja como ela se espalha como fogo selvagem.

Uma sólida reputação aumenta a sua presença e exagera a sua força sem que você precise gastar muita energia. Ela também pode criar uma aura ao seu redor que infunde respeito, até medo.

Como se diz, a sua fama inevitavelmente chega antes, e se ela inspira respeito, grande parte do trabalho já estará feito quando você entrar em cena, ou pronunciar uma simples palavra. O seu sucesso parece predestinado por seus triunfos no passado. Faça com que a sua reputação seja simples e baseada numa qualidade autêntica. Esta única qualidade — a eficiência, digamos, ou a sedução — torna-se uma espécie de cartão de visita que anuncia a sua presença e enfeitiça os outros. A fama de honestidade permitirá que você pratique todos os tipos de fraudes. Talvez você já tenha manchado a sua reputação, e não possa mais criar outra. Sendo assim, é prudente associar-se com alguém cuja imagem se contraponha a sua, usando o bom nome dessa pessoa para limpar e melhorar o seu. E difícil, por exemplo, limpar a reputação de desonesto sozinho; mas um modelo de honestidade pode ajudar. Reputação é um tesouro que deve ser cuidadosamente colecionado e guardado. Especialmente quando você está começando, deve protegê-la rigidamente, prevendo todos os ataques. Quando ela estiver sólida, não fique com raiva ou na defensiva com os comentários difamadores de seus inimigos — isso revela insegurança, falta de confiança na sua reputação. Pegue o caminho mais fácil, e jamais demonstre desespero na hora de se defender. Por outro lado, o ataque à reputação de outro homem é uma arma poderosa, particularmente se você tem menos poder do que ele. Ele tem muito mais a perder numa disputa como essa, e a sua própria reputação, ainda pequena, é um alvo pequeno quando ele tentar atirar de volta. Mas esta tática deve ser praticada com habilidade; você não deve parecer interessado numa vingança mesquinha. Se você não for esperto na hora de prejudicar a reputação do seu inimigo, estará inadvertidamente arruinando a sua.

Thomas Edison, considerado o inventor que controlou a eletricidade, acreditava que um sistema viável deveria se basear na corrente contínua (DC). Quando o cientista sérvio Nikola Tesla pareceu ter conseguido criar um sistema baseado na corrente alternada (AC), Edison ficou furioso. Ele decidiu acabar com a reputação de Tesla, fazendo o público acreditar que o sistema AC era inerentemente inseguro, e Tesla responsável por promovê-lo.

Com este objetivo, ele capturou animaizinhos domésticos de todos os tipos e os eletrocutou, matando-os, com uma corrente AC. Não bastando isso, em 1890 ele conseguiu que as autoridades da prisão do estado de Nova York procedessem à primeira execução de um condenado à morte com choque elétrico, usando uma corrente AC. Mas todas as experiências de eletrocussão realizadas por Edison tinham sido com pequenas criaturas; a carga era muito fraca, e o homem ficou só meio morto. Na execução que talvez tenha sido a mais cruel autorizada pelo estado no país, o procedimento teve de ser repetido. Foi um espetáculo horrível. Embora, a longo prazo, o que subsistiu foi o nome de Edison, na época a sua campanha prejudicou mais a sua própria reputação do que a de Tesla. Ele se retraiu. A lição é simples — não exagere em ataques como este, porque chamará mais atenção para a sua própria índole vingativa do que para a pessoa que você está difamando. Quando a sua própria reputação é sólida, use táticas mais sutis, como a sátira e o ridículo, para enfraquecer o seu adversário enquanto você se mostra um charmoso brincalhão. O poderoso leão brinca com o camundongo que cruza o seu caminho — qualquer outra atitude prejudicaria a sua temível reputação.

O INVERSO

Não há inverso. A reputação é crítica; não há exceções a esta lei. Talvez, não se importando com o que as pessoas pensem a seu respeito, você ganhe fama de insolente e arrogante, mas esta por si só é uma imagem valiosa — Oscar Wilde a usou com grande proveito. Visto que temos de viver em sociedade e depender da opinião alheia, nada se ganha negligenciando a própria reputação. Quando você não se preocupa com a maneira como as pessoas o vêem, está deixando que os outros decidam isso por você. Seja dono do seu próprio destino, e também da sua reputação.

Portanto, eu desejaria que o cortesão defendesse o seu valor inerente com habilidade e astúcia, e garantisse que, onde quer que chegue como estrangeiro, seja precedido por uma boa reputação... Pois a fama que parece apoiar-se nas opiniões de muitos favorece uma certa fé inabalável no valor de um homem, o qual em seguida é facilmente reforçado nas mentes já predispostas e preparadas. Baldassare Castiglione, 1478-1529

Fonte: "As 48 leis do Poder", Robert Greene e Joost Elffers, Editora Rocco, 2000

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Qual a sua fome?

Fique atento: O português desse texto está escrito no português de Portugal.


Manuel afagou carinhosamente o braço do filho.

"Quero pedir-te desculpa por não ter sido um melhor pai."

"Oh, não diga isso. O pai foi formidável."

"Não fui e sabes que não fui." Arfou. "Fui um pai ausente, sem paciência para ti, mergulhado apenas nas minhas equações e teoremas, nas minhas investigações, no meu mundo."

"Não se preocupe. Sempre tive muito orgulho em si, sabe? É melhor um pai que procura nas equações os segredos do universo do que um pai que não sabe o que procura."

O velho matemático sorriu, encontrava energia onde supunha não a ter.

"Oh, sim. Muita gente não sabe o que procura." Fixou os olhos no teto. "A maior parte das pessoas passa por esta vida como se fosse sonâmbula, percebes? Querem possuir coisas, fazer dinheiro, consumir tudo. As pessoas estão tão inebriadas com o acessório que perdem de vista o essencial. Desejam um novo carro, uma casa maior, umas roupas mais vistosas. Querem perder peso, tentam agarrar a juventude, sonham em impressionar os outros." Respirou fundo, para recuperar o fôlego, e olhou para o filho. "Sabes por que o fazem?"

"Porquê?"

"Porque têm fome de amor. Têm fome de amor e não o encontram. É por isso que se voltam para o acessório. Os carros, as casas, as roupas, as jóias... tudo isso são substitutos. Não têm amor e procuram substitutos." Abanou a cabeça. "Mas isso não resulta. O dinheiro, o poder, a posse de coisas... nada substitui o amor. É por isso que, quando compram um carro, uma casa, uma peça de roupa, a satisfação que sentem é efêmera. Acabaram de comprar mas procuram já um novo carro, uma nova casa, uma nova peça de roupa. Procuram algo que não está ali." Nova pausa para respirar. "Nenhuma dessas coisas traz satisfação duradoura porque nenhuma dessas coisas é verdadeiramente importante. Estão todos com pressa à procura de algo que não encontram. Quando compram o que querem, descobrem que se sentem vazios. É porque o que compraram não era afinal o que queriam. Querem amor, não querem coisas. As coisas não passam de substitutos, de acessórios que mascaram o essencial."

"Mas o pai não foi assim..."

"Assim, como?"

"Assim... sempre a querer comprar coisas, sempre preocupado com o dinheiro."

"Eu andei noutras corridas. Nunca quis ter coisas, é verdade. Mas vivi a minha vida à procura do conhecimento."

"Está a ver? Isso é bem melhor, não?"

"Claro que é melhor. Mas o preço foi negligenciar-te. Não sei se isso foi bom." Arfou de novo. "Sabes, chego à conclusão de que o mais importante é dedicarmo-nos às pessoas. Dedicarmo-nos à família e à comunidade. Só isso nos preenche. Só isso tem significado."

"Mas não encontrou significado no seu trabalho?"

"Claro que sim."

"Está a ver? Valeu a pena."

"Mas o preço foi negligenciar a família..."

"Oh, não faz mal. Eu não me queixo. A mãe não se queixa. Estamos bem e temos orgulho em si."

Voltaram a abraçar-se e, por momentos, o silêncio impôs-se naquele pequeno quarto.

"Nunca percebi por que razão as pessoas não vêem o que me parece óbvio e andam tão ocupadas a fazer coisas irrelevantes. Zangam-se, afligem-se, preocupam-se com o que não tem importância, desgastam-se com o acessório. Foi um pouco por isso que me refugiei na matemática, sabes? Achei que nada era importante a não ser percebermos a essência do mundo que nos rodeia."

"Foi isso o que procurou na matemática?"

"Sim. Andei à procura da essência das coisas. Descubro agora, não sei se com embaraço, que, afinal, andei todo este tempo à procura de Deus." Sorriu. "Através da matemática, andei à procura de Deus."

"E encontrou-O?"

O velho pareceu desfocar os olhos.

"Não sei", acabou por dizer. "Não sei." Suspirou. "Encontrei algo de muito estranho. Não sei se é Deus, mas é algo de... extraordinário."

"O quê? O que encontrou?"

"Encontrei inteligência na concepção do universo. Isso é inegável. O universo está concebido com inteligência. Às vezes descobrimos uma coisa curiosa na matemática, uma qualquer brincadeira que, à primeira vista, parece absolutamente irrelevante. Mais tarde acabamos por constatar que aquela curiosidade numérica desempenha afinal um fundamental papel na estruturação de alguma coisa feita pela natureza."

"Estou a ver."

"O que é mais estranho na natureza é que tudo está ligado. Percebes? Mesmo coisas que parecem absolutamente díspares, sem relação umas com as outras... mesmo essas coisas estão ligadas. Quando raciocinamos, alguns electrões deslocam-se no nosso cérebro. Pois essa alteração ínfima acaba por influenciar, mesmo que minusculamente, a história de todo o universo." Fez um olhar sonhador. "Interrogo-me se nós não somos Deus."

"Como assim? Não percebo..."

"Ouve, Tomás. Deus é tudo. Quando olhas para algo da natureza, estás a ver uma faceta de Deus. Ora, como nós fazemos parte da natureza, nós somos também Deus. Entendes?"

"Estou a ver."

"É como se Deus fosse o nosso corpo e nós fôssemos os neurônios desse corpo." Falava pausadamente, como se cada palavra fosse a última, mas atrás dela vinha outra e outra ainda, o velho matemático descobria forças onde já não as parecia ter. "Imagina os nossos neurônios. Com toda a certeza, cada neurônio não sabe que faz parte da fatia pensante e consciente do meu corpo, pois não? Cada um acha que está separado de mim, que não faz parte de mim, que tem a sua individualidade. E, no entanto, a minha consciência é a soma de todas essas individualidades, as quais, aliás, não são individualidades nenhumas, são antes partes de um todo. Quer dizer, uma célula do meu braço não pensa, é como uma pedra na natureza, não tem consciência. Mas os neurônios no cérebro pensam. Eles, se calhar, encaram-me a mim como se fosse Deus e não se apercebem de que eu sou eles em conjunto. Da mesma maneira, nós, os seres humanos, talvez sejamos os neurônios de Deus e não nos apercebemos disso. Achamos que somos individuais, separados do resto, quando afinal fazemos parte de tudo." Sorriu. "Einstein acreditava que Deus é tudo o que vemos e ainda tudo o que não vemos."



Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lei 4 - Diga menos que o necessário

Quando você procura impressionar as pessoas com palavras, quanto mais você diz, mais comum aparenta ser, e menos controle da situação parece ter. Mesmo que você esteja dizendo algo banal, vai parecer original se você o tornar vago, amplo e enigmático. Pessoas poderosas impressionam e intimidam falando pouco. Quanto mais você fala, maior a probabilidade de dizer uma besteira.

O poder é de várias maneiras um jogo de aparências, e, quando você diz menos do que o necessário, inevitavelmente parecerá maior e mais poderoso do que é. O seu silêncio deixará as pessoas pouco à vontade. Os seres humanos são máquinas de interpretar e explicar e explicar: precisam saber o que o outro está pensando. Se você controla cuidadosamente o que revela, eles não conseguirão penetrar nas suas intenções ou nos seus pensamentos.

As respostas curtas que você der e o seu silêncio os colocarão na defensiva, e eles, nervosos, se apressarão a preencher o silêncio com diversos comentários que acabam revelando informações valiosas sobre eles mesmos e as suas fraquezas. Eles sairão de uma reunião com você sentindo-se roubados, e irão para casa pensar em todas as palavras que você disse. Esta atenção extra às suas parcas observações só aumentará o poder que você tem.

Dizer menos do que o necessário não é só para os reis e estadistas. Em quase todas as áreas da vida, quanto menos você diz, mais profundo e misterioso parece. Quando jovem, o artista Andy Warhol teve a revelação de que era impossível convencer as pessoas a fazer o que se queria delas apenas conversando. Elas se voltariam contra você, subverteriam os seus desejos, desobedeceriam a você por simples perversidade. Certa vez ele disse a um amigo, “Aprendi que na verdade você tem mais poder quando fica de boca fechada”.

Falando menos do que o necessário, você cria a aparência de significado e de poder. Também, quanto menos você diz, menor é o risco de falar uma bobagem ou até algo perigoso. Em 1825, um novo czar, Nicolau I, subiu ao trono) da Rússia. Imediatamente houve uma rebelião liderada por liberais que exigiam que o país se modernizasse — que suas indústrias e estruturas civis se igualassem às do resto da Europa. Esmagando brutalmente esta revolta (a Insurreição de Dezembro), Nicolau I condenou à morte um de seus líderes, Kondrati Rileive. No dia da execução, Rileiev subiu ao patíbulo, a corda no pescoço. O alçapão se abriu — mas, quando Rileiev ficou suspenso no ar, a corda se rompeu e ele foi ao chão. Na época, essas ocorrências eram sinal da providência ou vontade divina e quem se salvasse da morte dessa forma costumava ser perdoado. Quando Rileive se levantou, sujo e arranhado, mas acreditando que estava com o pescoço à salvo, gritou para a multidão, “Estão vendo, na Rússia não sabem fazer nada direito, nem mesmo uma corda!” Um mensageiro seguiu imediatamente para o Palácio de Inverno com a notícia do enforcamento que não tinha acontecido. Apesar de irritado com essa reviravolta frustrante, Nicolau I começou a assinar o perdão. Mas aí: Releiev disse alguma coisa depois deste milagre?”, o czar perguntou ao mensageiro. “Senhor”, o mensageiro respondeu, “ele disse que na Rússia não se sabe nem fazer uma corda.” “Nesse caso”, disse o czar, “vamos provar o contrário”, e rasgou o perdão. No dia seguinte, Rileiev foi para a forca de novo. Desta vez a corda não se partiu.

Aprenda a lição: As palavras, depois de pronunciadas, não podem ser tomadas de volta. Mantenha-as sob controle. Cuidado particularmente com o sarcasmo: a satisfação momentânea que se tem dizendo frases sarcásticas será menor do que o preço que se paga por ela.

O INVERSO

Há momentos em que não é sensato ficar calado. O silêncio pode despertar suspeitas e até insegurança, especialmente nos seus superiores; um comentário vago e ambíguo pode expor você a interpretações com as quais não contava. Ficar em silêncio e dizer menos do que o necessário são técnicas que devem ser praticadas com cautela, portanto, e na ocasião certa. Ocasionalmente, é mais sensato imitar o bobo da corte, que se faz de tolo mas sabe que é mais esperto do que o rei. Ele fala e fala, e distrai todo mundo, ninguém desconfia de que ele não é tão tolo assim.

Às vezes, as palavras também funcionam como uma espécie de cortina de fumaça quando você quer enganar os outros. Enchendo os seus ouvintes com palavras, você os distrai e hipnotiza; quanto mais você falar, menos eles desconfiam de você. A verborragia não é percebida como maliciosa e manipuladora, mas como sinal de incompetência e ingenuidade. Isto é o inverso da política do silêncio utilizada pelos poderosos: falando mais, e parecendo mais fraco e menos inteligente do que é, você pratica a dissimulação com muito mais facilidade.

Não abra a boca antes dos seus subordinados. Quanto mais você permanecer calado, mais rápido os outros começam a dar com a língua nos dentes. Quando eles movem os lábios e dão com a língua nos dentes, eu posso compreender suas verdadeiras intenções... Se o soberano não é misterioso, os ministros terão oportunidade de se aproveitar. Han-fei-tsé, filósofo chinês, século 3 a.C.

Fonte: "As 48 leis do Poder", Robert Greene e Joost Elffers, Editora Rocco, 2000

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Lei 3 - Oculte suas intenções

Mantenha as pessoas na dúvida e no escuro, jamais revelando o propósito de seus atos. Não sabendo o que você pretende, não podem preparar uma defesa. Leve-as pelo caminho errado até bem longe, envolva-as em bastante fumaça e, quando elas perceberem as suas intenções, será tarde demais.

Parte I: Use objetos de desejo e pistas falsas para enganar os outros

Se em algum momento da sua fraude as pessoas tiverem a mais leve desconfiança quanto a suas intenções estará tudo perdido. Não lhes dê oportunidade de perceber o que você pretende: disfarce colocando pistas falsas pelo caminho. Use a falsa sinceridade, envie sinais ambíguos, invente objetos de desejo desorientadores. Incapazes de distinguir o falso do verdadeiro, elas não podem ver o seu objetivo real. As pessoas na sua maioria são como um livro aberto. Elas dizem o que sentem, não perdem oportunidade de deixar escapar opiniões e, constantemente, revelam seus planos e intenções. Elas fazem isso por vários motivos. Primeiro, é fácil e natural querer sempre falar dos próprios sentimentos e planos para o futuro. É difícil controlar a língua e monitorar o que se revela. Segundo, muitos acreditam que sendo honestos e francos estão conquistando o coração das pessoas e mostrando a sua boa índole. Eles estão imensamente iludidos. A honestidade é na verdade uma faca sem fio, mais sangra do que corta. A sua honestidade provavelmente vai ofender os outros; é muito mais prudente medir as suas palavras, dizer às pessoas o que elas querem ouvir, em vez da verdade nua e crua que é o que você sente ou pensa. Mais importante, sendo despudoradamente franco você se torna tão previsível e familiar que é quase impossível inspirar respeito ou temor, e a pessoa que não desperta esses sentimentos não acumula poder.

Se você deseja poder, ponha imediatamente a honestidade de lado e comece a treinar a arte de dissimular suas intenções. Domine a arte e você prevalecerá sempre. Elementar para a habilidade de ocultar as próprias intenções é uma simples verdade sobre a natureza humana: nosso primeiro instinto é sempre o de confiar nas aparências. Não podemos sair por aí duvidando da realidade do que vemos e ouvimos — imaginar constantemente que as aparências ocultam algo mais nos deixaria exaustos e aterrorizados. Isto faz com que seja relativamente fácil ocultar as próprias intenções. Basta acenar com um objeto que você parece desejar, um objetivo que você parece querer alcançar, diante dos olhos das pessoas e elas tomarão a aparência como realidade. Uma vez com os olhos fixos na isca, elas não notarão o que você está realmente pretendendo. Na sedução, dê sinais conflitantes, tais como desejo e indiferença, e você não só os despistará, como inflamará o seu desejo de possuir você. Uma tática, que funciona com freqüência quando se quer armar uma pista falsa, é parecer estar apoiando uma idéia ou causa que, na verdade, contraria o que você sente. A maioria vai achar que você mudou de idéia, visto não ser comum brincar com tamanha leviandade com coisas tão carregadas de emoção como as suas próprias opiniões e valores. O mesmo se aplica a um objeto do desejo usado como chamariz: pareça querer alguma coisa pela qual não está nem um pouco interessado, e seus inimigos perderão o rumo, calculando tudo errado.

Durante a Guerra da Sucessão Espanhola, em 1711, o duque de Marlborough, chefe do exército inglês, queria destruir um forte francês importantíssimo que protegia uma estrada vital para a entrada na França. Mas ele sabia que, ao destruí-lo, os franceses perceberiam o que ele queria - avançar por aquela estrada. Em vez disso, ele simplesmente capturou o forte e o guarneceu com algumas das suas tropas, como se o desejasse para algum propósito particular. Os franceses atacaram o forte e o duque deixou que ele fosse reconquistado. Novamente de posse do forte, entretanto, eles o destruíram, imaginando que o duque tinha alguma razão importante para querer ficar com ele. Agora o forte não existia mais, o caminho estava livre, e Marlborough pôde facilmente entrar na França.

Use esta tática da seguinte maneira: não esconda as suas intenções se fechando (com o risco de parecer misterioso, e deixar as pessoas desconfiadas), mas falando sem parar sobre seus desejos e objetivos — só que não os verdadeiros. Você matará três coelhos com uma só cajadada: vai parecer uma pessoa cordial, franca e confiável; ocultará suas intenções; e deixará seus rivais atordoados tentando achar inutilmente uma coisa que levarão tempo para descobrir.

Outra ferramenta eficaz para colocar as pessoas desorientadas é a falsa sinceridade. Elas confundem facilmente sinceridade com honestidade. Lembre-se — o primeiro instinto é o de confiar nas aparências, e como as pessoas valorizam a honestidade e querem acreditar na honestidade dos que as cercam, raramente irão duvidar de você ou perceber o que você está fazendo. Parecer que está acreditando no que você mesmo diz dá um grande peso às suas palavras. Foi assim que Iago enganou e destruiu Otelo: diante da intensidade das suas emoções, da aparente sinceridade da sua preocupação com a suposta infidelidade de Desdêmona, como Otelo poderia desconfiar dele? Foi assim também que o grande charlatão, Yellow Kid Weil, tapou os olhos das suas vítimas: parecendo acreditar tanto no objeto-isca que acenava diante deles (um cavalo falso, um cavalo de corrida apresentado como uma barbada), ficava difícil duvidar da sua realidade. Claro que é importante não exagerar nessa área. A sinceridade é uma arma traiçoeira: aparente estar apaixonado demais e despertará suspeitas. Seja uma pessoa comedida e em quem se possa acreditar, ou a sua artimanha parecerá a fraude que ela é.

Para que a sua falsa sinceridade seja uma arma eficaz ocultando as suas verdadeiras intenções, adote a fé na honestidade e na franqueza como valores sociais importantes. Faça isso da forma mais pública possível. Enfatize a sua posição quanto a isso, divulgando ocasionalmente alguma idéia sincera — mas só aquela realmente sem importância ou irrelevante, é claro. O ministro de Napoleão, Talleyrand, era mestre em despertar a confiança das pessoas revelando um suposto segredo. Esta confiança fingida —a isca — despertava em seguida a confiança verdadeira do outro. Lembre-se: Os maiores impostores fazem de tudo para encobrir suas virtudes traiçoeiras. Cultivam um ar de pessoa honesta, numa área, para disfarçar a sua desonestidade em outras. A honestidade é simplesmente mais uma isca no seu arsenal.

Parte II: Disfarce as suas ações entre cortinas de fumaça

Trapacear é sempre a melhor estratégia, mas as melhores trapaças exigem uma cortina de fumaça para distrair a atenção das pessoas do seu verdadeiro propósito. O exterior afável – como a inescrutável cara-de-pau – e quase sempre a cortina de fumaça perfeita, escondendo suas intenções por trás do que confortável e familiar. Se você conduzir a vítima por um caminho desconhecido, ela não perceberá que você a está levando para uma armadilha.

Lembre-se: os paranóicos e desconfiados são os mais fáceis de enganar. Conquiste a sua confiança numa área e você terá a cortina de fumaça que turva a visão deles em outra, deixando que você se aproxime de manso e os arrase com um golpe devastador. Um gesto prestativo ou aparentemente honesto, ou que sugira a superioridade do outro — estas são táticas diversionistas perfeitas. Adequadamente montada, a cortina de fumaça é uma arma poderosíssima.

Se você acha que trapaceiros são aquela gente pitoresca que ilude com mentiras elaboradas e histórias incríveis, está muito enganado. Os maiores impostores são os que utilizam uma fachada suave e invisível que não chama atenção. Eles sabem que gestos e palavras extravagantes levantam logo suspeita. Pelo contrário, eles envolvem o seu objetivo numa aura familiar, banal, inofensiva.

Depois que você tiver atraído a atenção das suas vítimas para o familiar, elas não notarão a fraude que está ocorrendo pelas suas costas. A origem disso está numa verdade muito simples: as pessoas só conseguem focalizar uma coisa de cada vez. E realmente muito difícil para elas imaginar que a pessoa suave e inofensiva com quem estão lidando está ao mesmo tempo tramando outra coisa. Quanto mais cinza e uniforme a fumaça da sua cortina, melhor ela esconde as suas intenções. Nas iscas e pistas falsas discutidas na Parte 1, você distrai ativamente as pessoas; na cortina de fumaça, você ilude a sua vítima, atraindo-a para a sua teia. Por ser tão hipnótica, esta é com freqüência a melhor maneira de dissimular suas intenções. A forma mais simples de cortina de fumaça é a expressão facial. Por trás de um exterior brando, ilegível, podem estar sendo tramados todos os tipos de ações violentas e prejudiciais, sem serem percebidas. Esta é uma arma que a maioria dos homens poderosos na história aprendem a usar à perfeição. Dizia-se que ninguém era capaz de ler o rosto de Franklin D. Roosevelt. O barão James Rothschild teve por hábito, durante toda a sua vida, disfarçar o que estava realmente pensando com sorrisos afáveis e olhares indefiníveis. Stendhal escreveu a respeito de Talleyrand, “Jamais um rosto serviu tão pouco de barômetro”. Henry Kissinger fazia seus adversários numa mesa de negociação chorar de tédio, com seu tom de voz monótono, seu olhar inexpressivo, seus detalhamentos intermináveis; e aí, quando já estavam com o olhar esgazeado, ele os atingia de repente com uma relação de termos ousados. Apanhados desprevenidos, intimidavam-se facilmente. Como explica um manual de pôquer, “Na sua vez de jogar, o bom jogador raramente é um ator. Pelo contrário, ele pratica um comportamento frio que minimiza os padrões legíveis, frustra e confunde o adversário e permite mais concentração”.

Um conceito adaptável, a cortina de fumaça pode ser praticada em vários níveis, todos jogando com os princípios psicológicos da distração e da desorientação. Uma das cortinas de fumaça mais eficazes é o gesto nobre. As pessoas querem acreditar que gestos aparentemente nobres são autênticos, porque é uma crença agradável. Elas raramente notam como eles enganam.

O comerciante de peças de arte Joseph Duveen se viu certa vez diante de um terrível problema. Os milionários que pagavam tão bem por seus quadros não tinham mais tanto espaço nas suas paredes, e, com os impostos sobre heranças subindo cada vez mais, parecia pouco provável que continuassem comprando. A solução foi a National Gallery of Art, em Washington, D.C., que Duveen ajudou a criar em 1937 conseguindo que Andrew Mellon doasse a sua coleção. A National Gallery era a fachada perfeita para Duveen. Num só gesto, seus clientes fugiam aos impostos, abriam espaço nas paredes para novas aquisições e reduziam o número de quadros no mercado, mantendo a pressão que aumentava o seu preço. Tudo isto enquanto os doadores aparentavam ser benfeitores da sociedade.

Outra cortina de fumaça eficaz é o padrão, quando se estabelece uma série de ações que seduzem a vítima e a fazem acreditar que as coisas continuarão sempre da mesma maneira. O padrão joga com a psicologia da expectativa: nosso comportamento se encaixa no padrão, ou assim gostamos de pensar.

Em 1878, o barão ladrão americano Jay Gould criou uma empresa que começou a ameaçar o monopólio da companhia de telégrafos Western Union. Os diretores da Western Union resolveram comprar a empresa de Gould — foi preciso dispor de uma quantia considerável, mas eles achavam que tinham conseguido se livrar de um irritante adversário. Poucos meses depois, entretanto, Gould estava lá de novo, queixando-se de que fora tratado injustamente. Ele abriu uma segunda empresa para competir com a Western Union e a sua nova aquisição. A mesma coisa voltou a acontecer: a Western Union comprou a empresa para fazer com que ele calasse a boca. Logo o padrão voltou a se repetir pela terceira vez, mas agora Gould atacou na jugular: de repente, ele iniciou — e logo conseguiu — uma sangrenta tomada de controle hostil da Western Union. Ele tinha estabelecido um padrão que iludiu os diretores da empresa fazendo-os achar que o seu objetivo era ser comprado por um preço razoável. Depois de comprar, eles relaxavam e não percebiam que estavam na verdade apostando mais alto. O padrão funciona muito bem porque a pessoa se ilude esperando o contrário do que você está realmente fazendo.

Outra fraqueza psicológica que serve de base para se construir uma cortina de fumaça é a tendência que as pessoas têm de confundir aparência com realidade — a idéia de que se alguém parece fazer parte do seu grupo, é porque faz realmente. Este hábito faz da camuflagem uma fachada muito eficaz. O truque é simples: você simplesmente se mistura com as pessoas ao seu redor. Quanto mais você se misturar, menos suspeito se tornará. Durante a Guerra Fria das décadas de 1950 e 1960, como hoje se sabe, muitos funcionários públicos britânicos passaram informações secretas para os soviéticos. Ninguém descobriu nada durante anos porque eles eram, aparentemente, sujeitos honestos, tinham freqüentado boas escolas e se adequavam perfeitamente ao modelo da rede de ex-alunos de escolas de prestígio. A mistura é a cortina de fumaça perfeita para a espionagem. Quanto mais você se misturar, melhor conseguirá disfarçar suas intenções.

Lembre-se: é preciso paciência e humildade para apagar as suas cores brilhantes e colocar a máscara da pessoa insignificante. Não se desespere por ter de usar esta máscara apagada — quase sempre é a sua ilegibilidade que atrai os outros e faz você parecer poderoso.


O INVERSO

Não há cortina de fumaça, pista falsa, insinceridade, ou outra tática diversionista qualquer que disfarce as suas intenções se você já tiver fama de impostor. Com a idade e o sucesso que você vai alcançando, se torna cada vez mais difícil disfarçar a sua esperteza. Todos sabem que você é dissimulado; continue bancando o ingênuo e corra o risco de parecer um grande hipócrita, o que limitará seriamente o seu espaço de manobra. Nesses casos, é melhor assumir, aparentar ser um patife honesto, ou melhor, um patife arrependido. Não só vão admirá-lo por sua franqueza, como, o que é mais estranho e maravilhoso, você vai conseguir continuar com as suas artimanhas. À medida que ia ficando mais velho, P.T. Barnum, o rei da fraude no século XIX, foi aprendendo a aceitar a sua reputação de grande impostor. Num determinado momento, ele organizou uma caça a búfalos em Nova Jersey, completa, com índios e alguns búfalos importados. Ele divulgou a caçada como sendo autêntica, mas o resultado foi tão artificial que a multidão, em vez de ficar zangada e pedir o dinheiro de volta, se divertiu muito. Eles sabiam que Barnum trapaceava o tempo todo; era o segredo do seu sucesso e gostavam dele por isso. Aprendendo a lição, Barnum parou de esconder as suas artimanhas, chegando até a revelar suas fraudes numa autobiografia. Como escreveu Kierkegaard, “O mundo quer ser enganado”. Finalmente, embora seja mais sábio distrair a atenção dos seus propósitos, apresentando um exterior suave e familiar, há momentos em que o gesto colorido, visível, é a tática diversionista correta. Os grandes charlatões saltimbancos da Europa nos séculos XVII e XVIII usavam o humor e o divertimento para iludir suas platéias. Deslumbrado com o espetáculo, o público não percebia as verdadeiras intenções dos charlatões. Assim, o próprio astro charlatão aparecia na cidade numa carruagem negra puxada por cavalos negros. Palhaços, funâmbulos e artistas de espetáculos de variedade o acompanhavam, atraindo o povo para as suas demonstrações de elixires e poções milagrosas. O charlatão fazia o divertimento parecer o assunto do dia quando, na verdade, o assunto do dia era a venda dos elixires e poções milagrosas. Espetáculo e divertimento são, nitidamente, excelentes artifícios para dissimular as suas intenções, mas não podem ser usados indefinidamente. O público se cansa e desconfia, e acaba percebendo o truque. Pessoas poderosas com exteriores afáveis, por outro lado — os Talleyrand, os Rothschild, os Selassie —, podem praticar suas dissimulações no mesmo lugar a vida inteira. Seu ato não se desgasta, e raramente levanta suspeitas. A cortina de fumaça colorida deve ser usada com cautela, portanto, e só na ocasião certa.

Não deixe que o vejam como impostor, mesmo que hoje seja impossível não o ser. Que a sua maior esperteza esteja em dissimular o que parece ser esperteza.” Baltasar Gracián

Já ouviu falar de um general muito hábil que pretende surpreender uma cidadela anunciando seus planos ao inimigo? Oculte os seus propósitos e esconda o seu progresso; não revele a extensão dos seus objetivos até ser impossível se opor a eles, até terminar o combate. Conquiste a vitória antes de declarar a guerra. Em resumo, imite aqueles guerreiros cujas intenções ninguém sabe, exceto o país destruído por onde eles passaram.” (Ninon de Lenclos, 1623-1706)

Fonte: "As 48 leis do Poder", Robert Greene e Joost Elffers, Editora Rocco, 2000

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Como a inteligência pode continuar existindo se tudo um dia acabará?

Fique atento: O português desse texto está escrito na forma de português de Portugal.

"Bem, a primeira coisa que teve de fazer foi definir o objeto de estudo. O que é Deus? Quando falamos de Deus, estamos a falar exatamente do quê? Do Deus descrito pela Bíblia?"

"Suponho que sim..."

"Mas o Deus descrito pela Bíblia, como lhe expliquei há duas semanas, é absurdo." Ergueu-se e saiu do cubículo. Dirigiu-se a uma prateleira ali perto, pegou num enorme volume soberbamente encadernado e voltou ao esconderijo, sentando-se com a obra aberta no regaço. "Ora deixe cá ver", disse, folheando as páginas iniciais até localizar o trecho que procurava. "Aqui está. Logo no início do Antigo Testamento está escrito que Deus quis dar ao homem uma auxiliar e, então, fez o seguinte: «após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse.» Depois a Bíblia acrescenta: «contudo, não encontrou para ele uma auxiliar adequada. Então, o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher»." Ergueu a cabeça. "Não vê nada de estranho neste relato?"

Tomás encolheu os ombros.

"Quer dizer... uh... é um relato bíblico, não é?"

"Mas não é Deus que é suposto ser onisciente? Não saberia Ele de antemão que nenhum dos animais dava uma auxiliar adequada? Por que razão esteve Deus à espera de ver que nome dava o homem aos animais? Sendo omnisciente, não conseguiria Ele saber isso previamente?" Folheou mais umas páginas. "E agora repare aqui no que aconteceu quando Deus decidiu provocar o dilúvio:

«O Senhor arrependeu-Se de ter criado o homem sobre a terra»." Voltou a fixar Tomás nos olhos. "O Senhor arrependeu-se? Mais uma vez, não era Ele omnisciente? Não podia Ele ter visto antecipadamente que o homem se iria corromper? Sendo perfeito e todo-poderoso, não faria sentido que Deus tudo previsse em tempo útil? Que história é esta de Deus estar a emendar os Seus erros? Mas afinal Deus comete erros, é?"

"Pois..."

"Isto para não falar, claro, no velho paradoxo de Deus ser onipotente e bom, mas deixar que o mal grasse por toda a parte. Então se Ele é bom e tem poder de impor o bem, por que razão deixa que o mal exista? Se Ele é perfeito, por que razão fez o homem tão imperfeito?" Fechou o volume e pousou-o no chão. "Tudo isto deixou Einstein convencido de que Deus, a existir, não é o Deus da Bíblia. É uma entidade onisciente e inteligente, a força por detrás do universo, o grande arquiteto de tudo, mas não a figura antropomórfica, paternal e moral da Bíblia. Essa convicção de Einstein foi assimilada pelo professor Siza."

"Portanto, isso quer dizer que o professor não foi à procura do Deus da Bíblia..."

"Não, não foi. Aliás, ele sempre achou que o grande fracasso dos teólogos em demonstrar cientificamente a existência de Deus se deve à sua obsessão em exigir que essa demonstração envolva o Deus da Bíblia. Ora, o Deus da Bíblia contém demasiadas incoerências, não é crível que Ele exista. Deus não é uma figura protectora que passa a vida preocupado com o que os homens fazem. Esse Deus é uma criação humana, um conceito que inventamos para nos sentirmos mais seguros, mais protegidos, mais confortados. Diga lá se não é agradável ter um pai sempre a tutelar-nos?"

"Mas... e a prova da criação do universo em seis dias, feita no manuscrito de Einstein? Não acha que isso confirma a Bíblia?"

"Esse é um elemento muito importante", reconheceu Luís Rocha. "Como lhe disse, Einstein estava convencido de que o Deus da Bíblia não existia. Mas o que se passou foi que, ao mesmo tempo, concluiu que havia verdades profundas misteriosamente escondidas no Antigo Testamento."

"Qual é a explicação para esse fato?"

"Não há explicação. A realidade é que, por algum motivo desconhecido, os textos antigos encerram segredos ocultos. Por exemplo, descobriu-se agora existir uma estranha correlação entre verdades cabalísticas, relacionadas com a interpretação do Antigo Testamento, e as mais avançadas teorias da física."

"Como assim?"

"Olhe, uma das mais promissoras candidatas à Teoria de Tudo é a Teoria das Cordas. É um pouco complicado explicá-la, mas as suas equações prevêem que a matéria básica é formada por cordas que vibram, existentes num espaço de vinte e seis dimensões para as micropartículas de energia, designadas bosões, e dez dimensões para as outras micropartículas, os fermiões. Tal como a força forte e a força fraca permaneceram circunscritas ao microcosmos depois do Big Bang, os físicos acreditam que vinte e duas dimensões permaneceram igualmente circunscritas ao microcosmos após a criação do universo. Por algum motivo, apenas a gravidade e a força eletromagnética estenderam uma influência visível ao macrocosmos e o mesmo aconteceu com apenas quatro dimensões espaço-temporais. É por isso que nos parece que o universo tem três dimensões espaciais e uma temporal. São essas que afectam o nosso mundo visível, mas há vinte e duas outras que permanecem invisíveis no microcosmos, capazes apenas de influenciarem o comportamento das micropartículas."

"Isso é possível?"

"A matemática indica que sim", assentiu o físico. "Mas, agora, diga-me. Você está familiarizado com a Cabala?"

"Sim, claro. Sou historiador, especialista em línguas antigas e criptanalista. Logo, tenho obrigação de conhecer a Cabala, não é? Além do mais, andei nos últimos anos a aprender hebraico e aramaico, de modo que este é um terreno em que me sinto à vontade."

"Ainda bem, porque assim poderá entender melhor a relação entre uma das mais avançadas teorias da física, a Teoria das Cordas, e a Cabala."

Tomás fez um ar intrigado.

"A relação entre a física e a Cabala? Está a falar de quê?"

O físico sorriu.

"Professor, suponho que saiba o que é a Arvore da Vida..."

"Com certeza", devolveu o historiador. "A Árvore da Vida é a estrutura cabalística que explica o ato de nascimento do universo, a unidade elementar da Criação, a menor partícula indivisível contendo os elementos do todo. É constituída por dez sephirot, ou seja, dez emanações manifestadas por Deus na Criação. Cada um dos dez sephirot corresponde a um atributo divino."

"Repita lá, quantos sephirot tem a Árvore da Vida?"

"Dez."

"Muito bem", exclamou, satisfeito. "Presumo que saiba também o que é a guematria."

"Claro", disse Tomás, sempre muito confiante nesta área. "É uma técnica cabalística que obtém o valor numérico das palavras da Bíblia através da correspondência entre as letras do alfabeto hebraico e os algarismos. Dizem os cabalistas que Deus criou o universo com números e palavras e que cada número e cada palavra contém um mistério e uma revelação. Por exemplo, a primeira palavra do Antigo Testamento é bereshith, que significa no princípio. Ora, se dividirmos bereshith em duas palavras fica bere, ou criou, e shith, seis. A Criação durou seis dias. Está a ver? Esta é uma forma de guematria. A primeira palavra do Antigo Testamento contém em si os seis dias da Criação. Outra forma de guematria é a pura contagem das letras. Diz o Gênesis que Abraão levou 318 servos para uma batalha. Mas o valor numérico do nome do seu servo Eliezer, descobriram os cabalistas, é 318, o que quer dizer que Abraão só levou consigo o seu único servo."

"Já vi que está dentro do assunto", observou Luís Rocha. "Então diga-me lá agora qual é a guematria do maior nome de Deus?"

"Bem... uh... o maior nome de Deus é... uh... Yodhey Vavhey. Mas confesso que não sei qual a guematria a que corresponde este nome. Teria de fazer as contas..."

"A guematria do maior nome de Deus é vinte e seis." Inclinou a cabeça. "Quantas letras tem o alfabeto hebraico?"

"Vinte e duas."

"E agora uma última pergunta", disse o físico. "Segundo os cabalistas, quantos são os caminhos da sabedoria percorridos por Deus para criar o universo?"

"Trinta e seis. Os caminhos percorridos por Deus para criar o universo correspondem à ligação dos dez sephirot da Árvore da Vida com as vinte e duas letras do alfabeto hebraico, a que se acrescentam mais quatro caminhos."

Luís Rocha sorriu.

"Reparou nestas coincidências todas?"

"Quais coincidências?"

"Dez sephirot cabalísticos para criar o universo, dez dimensões nas cordas dos fermiões para criar a matéria", disse, erguendo um dedo. Acrescentou um segundo dedo. "Vinte e seis é a guematria do maior nome de Deus, vinte e seis são as dimensões nas cordas dos bosões para criar a matéria." Veio o terceiro dedo. "Vinte e duas letras do alfabeto hebraico, vinte e duas as dimensões que permanecem ocultas no microcosmos." Agora o quarto. "Trinta e seis caminhos percorridos por Deus para criar o universo, trinta e seis é a soma das dimensões nas quais vibram os bosões e os fermiões." Piscou o olho, como uma criança que descobriu a chave do quarto dos brinquedos. "Será coincidência?"

"Bem... uh... isso é realmente surpreendente."

"O que Einstein constatou é que os textos sagrados contêm verdades científicas profundas, impossíveis de conhecer no seu tempo. E não é só na Bíblia, sabe? Os textos hindus, os textos budistas, os textos taoístas, todos eles encerram verdades eternas, aquele tipo de verdades que só agora a ciência começa a desvendar. A questão é: como é que os sábios antigos tiveram acesso a essas verdades?"

Fez-se uma pausa.

"E qual é a resposta?"

"Não sei. Ninguém sabe. Pode ser tudo coincidência, claro. Afinal de contas, o ser humano gosta de encontrar padrões em tudo, não é? Mas pode ser também que, tal como as micropartículas da experiência Aspect não passam de imanências de um único real, as verdades científicas contidas nas sagradas escrituras constituam imanências desse mesmo real único. É como se os sábios antigos tivessem sido inspirados por algo profundo, eterno, onipresente mas invisível."

"Estou a ver..."

"Tudo isto para lhe dizer que, embora Einstein e o professor Siza não acreditassem no Deus da Bíblia, achavam ambos que, em determinados aspectos e sob determinadas formas, as sagradas escrituras misteriosamente ocultavam verdades profundas."

Beberam mais um trago do expresso.

"De qualquer modo, e apesar dessas estranhas coincidências, o Deus que o professor Siza procurou não foi o Deus da Bíblia..."

"É isso", assentiu Luís Rocha. "Não foi o Deus da Bíblia. Foi algo de diferente. O professor Siza foi à procura de uma força criadora, inteligente e consciente, mas não necessariamente moral, nem boa, nem má." Suspirou. "Assim delimitado o campo de investigação, redefinindo-se o objeto de estudo, houve que proceder a uma segunda definição: o que é isso de provar a existência de Deus?"

O físico deixou a pergunta no ar.

"Está-me a perguntar a mim?", quis saber Tomás, hesitante, sem saber se a pergunta era meramente retórica ou para ser de fato respondida.

"Sim, claro. O que é isso de provar a existência de Deus?"

"Bem... uh... não sei, confesso que não sei."

"Será arranjar um telescópio tão poderoso que nos permitirá ver Deus, com as suas grandes barbas de patriarca, a brincar com estrelas? Será desenvolver uma equação matemática que contenha o ADN de Deus? Mas afinal o que é isso de provar a existência de Deus?"

"É uma boa pergunta, sem dúvida", considerou Tomás. "Qual a resposta?"

Luís Rocha exibiu três dedos.

"A resposta assenta em três pontos", disse. "Primeiro, Deus é sutil. Através da Teoria do Caos, dos teoremas da Incompletude e do Princípio da Incerteza ficámos a perceber que o Criador ocultou a Sua assinatura, escondeu-se por detrás de um fino véu engenhosamente concebido para O tornar invisível. Isso, como é bom de ver, dificulta seriamente a tarefa de provar a Sua existência." Traçou o segundo dedo. "Segundo, Deus não é inteligível através da observação. Quer isto dizer que não é possível provar a Sua existência por intermédio de um telescópio ou de um microscópio."

"E por que não?", interrompeu Tomás.

"Ora, por vários motivos", retorquiu o físico. "Repare, imagine que o universo é Deus, como defendia Einstein. Como observá-Lo na sua totalidade? O professor Siza chegou à conclusão de que os físicos e os matemáticos estavam a observar o universo um pouco como um engenheiro olha para um televisor. Imagine que se pergunta a um engenheiro: o que é a televisão? O engenheiro põe-se a observar um televisor, abre-o todo e depois diz que a televisão são fios e esquemas elétricos estruturados de uma determinada maneira." Apontou para Tomás. "Mas eu pergunto-lhe a si: acha que isso dá uma resposta completa à questão de saber o que é a televisão?"

"Uh... dá uma resposta de engenheiro, acho eu."

"É isso, dá uma resposta de engenheiro. Mas a televisão, sendo fios e circuitos eléctricos, é muito mais do que isso, não é? A televisão transmite programas de informação e entretenimento, tem um impacto psicológico junto de cada pessoa, permite a transmissão de mensagens, produz vastos efeitos sociológicos na sociedade, tem dimensão política e cultural, enfim... é uma coisa muito mais vasta do que a mera descrição das suas componentes tecnológicas."

"Está a colocar aquele problema de que já me tinha falado, o hardware e o software?"

"Nem mais", concordou Luís Rocha. "A perspectiva reducionista, que se centra no hardware, e a perspectiva semântica, inserida no software. Os físicos e os matemáticos olham para o universo como um engenheiro olha para um televisor ou para um computador. Apenas vêem os átomos e a matéria, as forças e as leis que as regem, e tudo isso, se formos a ver bem, não passa de hardware. Mas qual é a mensagem deste enorme televisor? Qual é o programa deste gigantesco computador? O professor Siza concluiu que o universo tem um programa, dispõe de um software, possui uma dimensão que está muito para além da soma das suas componentes. Ou seja, o universo é muito mais do que o hardware que o constitui. É um gigantesco programa de software. O hardware apenas existe para viabilizar esse programa."

"Como um ser humano", observou Tomás.

"Exato. Um ser humano é feito de células e tecidos e órgãos e sangue e nervos. Isso é o hardware. Mas o ser humano é muito mais do que isso. É uma estrutura complexa que possui consciência, que ri, que chora, que pensa, que sofre, que canta, que sonha e que deseja. Ou seja, somos muito, muito mais do que a mera soma das partes que nos constituem. O nosso corpo é o hardware por onde passa o software da nossa consciência." Fez um gesto largo com os braços. "Assim é também a realidade mais profunda da existência. O universo é o hardware por onde passa o software de Deus."

"É uma idéia arrojada", considerou Tomás. "Mas tem a sua lógica."

"O que nos remete para o problema do infinito", exclamou o físico. "Repare, se o universo é o hardware de Deus, isso coloca várias questões curiosas, já viu? Por exemplo, uma vez que nós, seres humanos, fazemos parte do universo, isso significa que nós somos parte do hardware, não é? Mas, será que somos também, nós próprios, um universo? Será que o universo é alguém imensamente grande, tão grande que não o vemos, tão grande que se torna invisível? Alguém tão grande para nós como tão grandes somos nós para as nossas células? Será que estamos para o universo como os nossos neurônios estão para nós? Será que somos o universo dos neurônios e somos os neurônios de alguém muito maior? Será que o universo é uma entidade orgânica e nós não passamos das suas células minúsculas? Seremos nós o Deus das nossas células e nós as células de Deus?"

Ficaram ambos um longo momento a digerir aquelas interrogações.

"O que acha você?", quis saber Tomás.

"Acho que o problema do infinito é tramado", devolveu Luís Rocha. "Sabe, nós, os físicos, andamos à procura de partículas fundamentais, mas sempre que as encontramos acabamos por descobrir que elas são, afinal, compostas por partículas mais pequenas. Primeiro pensava-se que o átomo era a partícula fundamental. Depois descobriu-se que o átomo era constituído por partículas mais pequenas, os protões, os neutrões e os electrões. Julgou-se então que essas é que eram as partículas fundamentais. Mas descobriu-se afinal que os protões e os neutrões são formados por outras micropartículas mais pequenas, os quarks. E há quem pense que os quarks são formados por novas micropartículas ainda mais pequenas e as mais pequenas por outras mais pequenas. O microcosmos é infinitamente pequeno."

"Como o Paradoxo de Zenão", comentou Tomás, com um sorriso. "Tudo é divisível pela metade."

"Exato", concordou o físico. "E, pela mesma razão, tudo é multiplicável pelo dobro. Por exemplo, o nosso universo é enorme, não é? Mas as últimas teorias cosmológicas admitem a possibilidade de este ser apenas um entre bilhões de universos. O nosso universo nasceu, está a crescer e, conforme o demonstra a segunda lei da termodinâmica, irá morrer. Ao lado dele existirão muitos outros iguais. É como se o nosso universo não passasse de uma bolha de espuma num oceano imenso, ao lado de imensas outras bolhas de espuma iguais." Fez uma pausa. "Chamam-lhe o meta-universo."

"Portanto, o universo é então infinito."

"É uma possibilidade. Mas não é a única."

"Existe outra?"

"Existe a possibilidade de o universo ser finito."

"O universo ser finito? Acha isso possível?"

"Ouça, é outra possibilidade."

"Mas como é isso possível? Se o universo for finito, o que há para além do seu limite?"

"A ser finito, não teria limite."

"Como assim? Não entendo..."

"É simples. Fernão de Magalhães começou a navegar para oeste, certo? Navegou, navegou, navegou e, surpresa, veio parar ao ponto de partida." Luís Rocha ergueu as mãos e rodou-as, como se segurasse uma bola. "Ou seja, ele provou que a Terra é finita, mas não tem limite. É possível que o universo também seja assim. Finito, mas sem limites."

"Estou a entender."

Os dois terminaram o café.

"Bem, tudo isto porque estava eu a dizer que a resposta à questão da prova da existência de Deus assenta em três pontos fundamentais. O primeiro é a constatação de que Deus é sutil e o segundo é a constatação de que não O podemos observar através de um telescópio ou de um microscópio." Ergueu um terceiro dedo. "Mas, apesar de todas as dificuldades, há uma maneira indireta de chegar à prova da existência de Deus."

"Então?"

"Através da busca de dois traços essenciais: a inteligência e a intenção. O professor Siza determinou que, para sabermos se o universo foi criado por uma inteligência consciente, temos de dar resposta a uma pergunta fundamental: existe ou não inteligência e intenção na criação do universo?" Inclinou a cabeça. "Não basta que a resposta seja afirmativa em relação a um destes pontos. Tem de ser afirmativa em relação aos dois, percebeu?"

Tomás fez uma careta pensativa.

"Não muito bem. Se se conseguir provar que há inteligência, não acha que isso basta?"

"Claro que não", devolveu Luís Rocha. "Olhando para a rotação da Terra em torno do Sol, parece-nos a nós evidente que há inteligência no movimento. Mas essa inteligência é intencional ou fortuita? É que, repare, pode ser tudo fruto do mero acaso, não pode? Se o universo for infinitamente grande, é inevitável que, num número infinito de situações diferentes, algumas exibam as características da nossa. Portanto, se a inteligência das coisas for fortuita, não é possível vermos aí, com toda a certeza, a mão de Deus, pois não? Temos também de determinar se há intenção."

"Estou a perceber."

"O problema é que o conceito de intenção é muito difícil de concretizar. Qualquer professor aqui da Faculdade de Direito lhe dirá isso. Num processo em tribunal, uma das grandes dificuldades é justamente a de determinar a intenção do arguido quando cometeu determinado ato. O arguido matou uma pessoa, mas matou-a porque quis matar ou isso foi um acidente? O arguido sabe que matar com intenção é mais grave e, em geral, argumenta que matou mas não quis matar, tudo não passou de um terrível azar. A dificuldade é, pois, a de determinar a intenção do acto." Fez um gesto largo com os braços. "O mesmo se passa no universo. Olhando para tudo em nosso redor, podemos constatar que existe grande inteligência na concepção das coisas. Mas essa inteligência é fortuita ou existe uma intenção por detrás de tudo? A haver intenção, qual é essa intenção? E, elemento

crucial, existirá alguma maneira de, havendo intenção, demonstrar a sua existência?"

"A resposta não está naquela metáfora do relógio que você me explicou no outro dia?"

"Sim, o relógio de William Paley é um argumento poderosíssimo. Se encontrarmos no chão um relógio e o analisarmos, logo percebemos que ele foi concebido por um ser inteligente com uma intenção. Ora, se isso é válido para uma coisa tão simples como um mero relógio, por que não seria válido para uma coisa tão imensamente mais inteligente e complexa como é o universo?"

"Justamente. Isso não serve de prova?"

"É um poderoso indício de inteligência e intenção, mas não é prova."

"Então como é que se pode fazer a prova?"

Luís Rocha endireitou-se na cadeira.

"Foi Einstein quem deu a pista", disse.

"Qual pista?"

O físico levantou-se do seu lugar e convidou Tomás a segui-lo para fora daquele apertado compartimento.

"Venha daí", disse. "Vou-lhe mostrar a segunda via."

Percorreram o longo tapete vermelho e atravessaram toda a biblioteca. Luís Rocha parecia um cicerone, guiando Tomás até junto de um enorme retrato emoldurado na parede do fundo, por entre as estantes de livros. Era uma soberba pintura de D. João V, o monarca ao qual a Biblioteca Joanina devia o seu nome. O físico pousou as suas coisas sobre um elegante piano negro de cauda que se encontrava instalado diante do retrato e fez sinal a Tomás para o seguir.

"Venha daí", disse.

Dirigiu-se a uma coluna do arco de acesso à última sala e, inesperadamente, abriu uma porta disfarçada na parede e mergulhou na sombra. Apesar de apanhado de surpresa, Tomás seguiu no encalço. Escalaram uma escadaria estreita envolta em escuridão e emergiram no primeiro andar, num apertado varandim de madeira, que percorreram até chegarem junto da parte alta do grande retrato. O anfitrião examinou a terceira estante da esquerda, tirou um volume branco, meteu a mão pelo buraco aberto entre os livros, extraiu da sombra uma pasta de cartolina azul-bebê, voltou a guardar o volume no lugar e fez sinal ao seu convidado para regressarem pelo mesmo caminho.

"O que é isso?", perguntou Tomás, intrigado, quando voltaram ao piso térreo.

"Esta é a segunda via", revelou Luís Rocha, sentando-se pesadamente na cadeira ao pé do piano, diante do olhar eternizado em tela de D. João V. "A prova científica da existência de Deus feita pelo professor Siza."

Tomás pousou os olhos na pasta. A cartolina apresentava um aspecto algo gasto e exibia o logótipo da Universidade de Coimbra, com um elástico em volta a fechá-la.

"Mas o que está um manuscrito desta importância aqui a fazer?", admirou-se o historiador. "O professor Siza guardava as suas coisas na Biblioteca Joanina?"

"Não, claro que não. O que se passou foi que, logo após o assalto em que o professor desapareceu, fiquei um pouco... enfim, assustado. Ao inventariar o que tinha sido tirado da casa, verifiquei que o velho manuscrito de Einstein não se encontrava em parte alguma e isso fez-me considerar a possibilidade de toda a investigação estar em perigo. De modo que decidi tirar da casa tudo o que havia relacionado com esta pesquisa. Ainda guardei as coisas no meu apartamento por alguns dias, mas isso pôs-me muito nervoso e acabei por achar que aquele não era igualmente um local seguro. Se assaltaram a casa do professor, poderiam também assaltar a minha, não é verdade? De modo que optei por distribuir algumas coisas pequenas entre os colegas do professor, incluindo o seu pai, por exemplo." Acariciou a cartolina azul. "O problema, no entanto, era o que estava nesta pasta, a segunda via, de longe o documento mais importante. Não lhes queria entregar a pasta para guardarem, mas também não a podia manter em casa, não é? O que fazer?" Fez um gesto na direção da estante de onde a retirara. "Foi então que tive a idéia de esconder a pasta num buraco que eu sabia existir aqui na biblioteca, ali em cima, mesmo ao lado do retrato do rei, detrás de uma fileira de livros."

"Você ficou realmente assustado, hã?"

"Então não havia de ficar? Se, além de raptarem o professor, tinham também levado A Fórmula de Deus, tornou-se evidente para mim que poderia haver uma relação entre o sequestro e a investigação. Como eu estava envolvido na investigação, comecei a sentir-me muito nervoso. Sabia lá se também me viriam bater à porta..."

"Pois claro."

Luís Rocha calou-se e olhou em redor. Ergueu os braços e fez um gesto largo com as mãos, abarcando toda a Biblioteca Joanina.

"Sabe, o professor Siza costumava dizer que esta biblioteca é a metáfora da assinatura divina no universo."

"A assinatura divina no universo? Não entendo..."

"É uma imagem inspirada nas conversas que ele teve com Einstein." Apontou para as estantes preenchidas por livros. "Imagine que uma criança entra nesta biblioteca e vê estes livros, todos eles redigidos em línguas desconhecidas, a maior parte em latim. A criança sabe que alguém escreveu os livros e sabe que os livros revelam coisas, claro, embora não saiba quem os escreveu nem o que eles contam. Na verdade, a criança nem sequer compreende latim. Suspeita que toda esta biblioteca está organizada segundo uma ordem, mas essa ordem parece-lhe misteriosa." Pousou a palma das mãos no peito. "Nós estamos como essa criança e o universo é como esta biblioteca. O universo contém leis e forças e constantes criadas por alguém, com objetivos misteriosos e segundo uma ordem incompreensível para nós. Compreendemos vagamente as leis, captamos as linhas gerais da ordem que tudo organiza, percebemos superficialmente que as constelações e os átomos se movem de determinada forma. Tal como a criança, desconhecemos os pormenores, apenas formamos uma pálida idéia do propósito de tudo isto. Mas há uma coisa de que temos a certeza: toda esta biblioteca foi organizada com uma intenção. Mesmo que não consigamos ler os livros nem jamais venhamos a conhecer os seus autores, o fato é que estas obras contêm mensagens e a biblioteca está organizada em obediência a uma ordem inteligente. Assim é o universo."

"Essa foi a pista dada por Einstein ao professor Siza para se encontrar a segunda via?"

"Não. Essa foi a metáfora que o professor Siza usava para explicar a inteligência intencional do universo, uma metáfora inspirada nas conversas que ele teve com Einstein."

Tomás esboçou uma expressão interrogativa.

"Então qual foi a pista dada por Einstein?"

Luís Rocha retirou o elástico que prendia a pasta e abriu-a, revelando uma resma de documentos e anotações, a maior parte cheia de equações estranhas, incompreensíveis para um leigo. O físico folheou as anotações até detectar uma página em particular.

"Cá está", disse. "Foi esta."

Tomás inclinou-se sobre a anotação.

"O que é isso?"

"É uma frase muito conhecida de Einstein", explicou Luís Rocha. "Disse ele: «o que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente, ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade»."

"Isso é uma pista?"

"Sim. O professor Siza sempre encarou esta frase como a pista para a segunda via e, se formos a ver bem, é fácil perceber porquê. O que Einstein está aqui a colocar é a questão da inevitabilidade de o universo ser como é e a questão do determinismo. Ou seja, e esta é a pergunta essencial: se as condições de partida fossem diferentes, quão diferente seria o universo?"

"Hmm."

"Claro que, naquele tempo, esta era uma questão incrivelmente difícil de responder. Faltavam ainda os modelos matemáticos para lidar com ela, por exemplo. Mas, uma década depois, com o aparecimento da Teoria do Caos, tudo mudou. A Teoria do Caos veio fornecer instrumentos matemáticos muito precisos para lidar com o problema da alteração das condições iniciais de um sistema."

"Não estou a perceber", disse Tomás. "O que entende por condições iniciais?"

"A expressão condições iniciais refere-se ao que aconteceu nos primeiros instantes de criação do universo com a distribuição da energia e da matéria. Mas é preciso também considerar as leis do universo, a organização das diversas forças, os valores das constantes da natureza, tudo, tudo. Olhe, por exemplo, veja o caso das constantes da natureza. Não lhe parece que elas são um elemento crucial neste cálculo?"

"As constantes da natureza?"

"Sim." Franziu o sobrolho, estranhando a pergunta. "Presumo que saiba do que se trata, não?"

"Uh... não."

"Ah, perdão, por vezes esqueço-me de que estou a falar com um leigo", exclamou o físico, levantando a mão a pedir desculpa. "Bem, as constantes da natureza são quantidades que desempenham um papel fundamental no comportamento da matéria e que, em princípio, apresentam o mesmo valor em qualquer parte do universo e em qualquer momento da sua história. Por exemplo, um átomo de hidrogênio é igual na Terra ou numa longínqua galáxia. Mas, mais do que isso, as constantes da natureza são uma série de valores misteriosos que se encontram na raiz do universo e que lhe conferem muitas das suas atuais características, constituindo uma espécie de código que encerra os segredos da existência."

Tomás contraiu o rosto num esgar intrigado.

"Ah, sim? Nunca tinha ouvido falar nisso..."

"Acredito", assentiu Luís Rocha. "Há muita coisa que os cientistas descobriram e que as pessoas comuns pura e simplesmente não conhecem. E, no entanto, estas constantes são algo de fundamental, elas constituem uma misteriosa propriedade do universo e condicionam tudo o que nos rodeia. Descobriu-se que o tamanho e a estrutura dos átomos, das moléculas, das pessoas, dos planetas e das estrelas não resultam de um acaso nem de um processo de seleção, mas dos valores destas constantes. Assim sendo, a questão que o professor Siza colocou foi muito simples: e se os valores das constantes da natureza fossem ligeiramente diferentes?"

"Como assim, diferentes?"

"Olhe, a força da gravidade ser ligeiramente mais fraca ou mais forte do que é, a luz apresentar uma velocidade no vácuo um pouco maior ou um pouco menor do que a que tem, a constante de Planck que determina a mais pequena unidade de energia possuir um valor marginalmente diferente... enfim, esse tipo de coisas. O que aconteceria se ocorressem pequenas alterações nestes valores?"

Fez-se silêncio.

"O que descobriu ele?", perguntou Tomás, mal contendo a curiosidade.

Luís Rocha inclinou a cabeça.

"Não sei se se lembra, mas quando o senhor esteve na minha primeira aula, aqui há algumas semanas, eu falei no problema do Ômega. Recorda-se disso?"

"Claro."

"O que reteve do que eu disse?"

"Bem... uh... disse que havia dois fins possíveis para o universo. Ou o universo parava a expansão e se retraía, acabando esmagado..."

"O Big Crunch..."

"... ou se expandia infinitamente até se acabar toda a sua energia e transformar-se num cemitério gelado."

"O Big Freeze. E o que provocava isso, lembra-se?"

"Acho que... acho que era a gravidade, não era?"

"Exato", exclamou o físico, fazendo sinal de aprovação. "Vejo que percebeu o que eu disse na aula. Se a velocidade de expansão conseguir vencer a força da gravidade, o universo expandir-se-á eternamente. Se não conseguir, regressará ao ponto de partida, um pouco como uma moeda que se atira para o ar e que acaba por voltar para baixo. Enquanto sobe, a moeda está a vencer a gravidade. Mas, depois, a gravidade acaba por vencê-la."

"É isso, lembro-me desse exemplo."

Luís Rocha ergueu um dedo.

"Só que eu não disse tudo. Existe uma terceira hipótese, que é a da força da expansão ser exatamente igual à força da gravidade de toda a matéria existente. A hipótese de isso acontecer é ínfima, claro, pois seria uma extraordinária coincidência que, considerando os enormes valores que estão em causa, a expansão do universo fosse exatamente contrariada pela gravidade exercida por toda a matéria, não acha?"

"Bem... sim, acho que sim."

"E, no entanto, é isso o que nos diz a observação. O universo está a expandir-se a uma velocidade incrivelmente próxima da linha crítica que separa o universo do Big Freeze do universo do Big Crunch. Já se descobriu que a expansão está em aceleração, o que sugere um futuro de Big Freeze, mas isso não é, nem por sombras, certo. A verdade é que, por incrível que pareça, encontramo-nos na linha divisória entre as duas possibilidades."

"Ah é?"

"É estranho, não lhe parece? E o fato é que isso, meu caro, significa que nos saiu a sorte grande."

"Como assim?"

"É muito simples. Imagine só a descomunal energia libertada no momento da criação do universo. Acha que é possível controlar toda essa gigantesca erupção?"

"Claro que não."

"É evidente que não. Considerando a força bruta do Big Bang, é muito natural que a expansão não possa ser controlada, não é? Essa expansão deveria ou não levar de vencida a força de gravidade de toda a matéria. É infinitamente improvável que a expansão e a gravidade estejam equilibradas. E, no entanto, ambas parecem estar muito próximas de se encontrarem equilibradas, se é que não estão mesmo equilibradas. Isto, meu caro, é o jackpot da lotaria. Repare, sendo o Big Bang um acontecimento acidental e descontrolado, a probabilidade de o universo permanecer para sempre num estado caótico, de máxima entropia, seria colossalmente esmagadora. O fato de haver estruturas de baixa entropia é um mistério muito grande, tão grande que alguns físicos dizem tratar-se de um incrível acaso. Se toda a energia libertada pelo Big Bang fosse uma pequeníssima fração mais fraca, a matéria voltaria para trás e esmagar-se-ia num gigantesco buraco negro. Se fosse marginalmente mais forte, a matéria dispersar-se-ia tão depressa que as galáxias nem sequer se chegariam a formar."

"Quando fala numa fração mais fraca ou mais forte, está a falar em quê? Numa diferença de cinco por cento? De dez por cento?"

Luís Rocha riu-se.

"Não", disse. "Estou a falar em frações inacreditavelmente pequenas, trilionesimais." Luís Rocha pegou numa caneta de feltro. "Olhe, o professor Siza fez as contas e descobriu que, para que o universo pudesse expandir-se de modo ordeiro, essa energia teria de ter uma precisão na ordem de um para 10120. Ou seja..."

Colocou a língua no canto da boca e redigiu o valor.


1000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000


O físico mordiscou caneta, mirando este vasto número.

"Quer isto dizer que bastava a afinação ter falhado um bocadinho de nada e o universo não teria a possibilidade de albergar vida. Recuaria para um monumental buraco negro ou dispersar-se-ia sem formar galáxias."

Tomás contemplou aquela enorme extensão de zeros, tentando digerir o seu significado.

"Incrível!" Os olhos voltaram a desfilar por aquela sucessão de algarismos redondos. "Isto equivale a quê? À hipótese de eu ganhar hoje a lotaria?"

Luís Rocha voltou a rir-se.

"Muito menos do que isso", disse. "Olhe, isto equivale à hipótese que você tem de atirar uma seta ao acaso para o espaço e ela atravessar todo o cosmos e ir atingir um alvo com um milímetro de diâmetro localizado na galáxia mais próxima."

"Caramba!", exclamou Tomás, pondo a mão diante da boca. "Isso seria uma sorte inacreditável..."

"Pois seria", concordou o físico. "E, no entanto, a energia do Big Bang tinha este valor tão incrivelmente preciso, situado neste intervalo tão espantosamente estreito. O mais extraordinário é que foi, de fato, libertada a energia rigorosamente necessária para que o universo se pudesse organizar. Isto é, nem mais nem menos a energia estritamente imprescindível para tal." Folheou mais umas páginas. "Esta surpreendente descoberta levou o professor Siza a embrenhar-se no estudo das condições iniciais do universo."

"O Big Bang?"

"Sim, o Big Bang e o que se lhe seguiu." Pegou nas anotações e folheou-as, até parar numa página. "Por exemplo, a questão da criação da matéria. Quando ocorreu a grande expansão criadora, não havia matéria. A temperatura era imensamente elevada, tão elevada que nem os átomos se conseguiam formar. O universo era então uma sopa escaldante de partículas e antipartículas, criadas a partir da energia e sempre a aniquilarem-se umas às outras. Essas partículas, os quarks e os antiquarks, são idênticas umas às outras, mas com cargas opostas, e, quando se tocam, explodem e voltam a ser energia. À medida que o universo se ia expandindo, a temperatura ia baixando e os quarks e antiquarks foram formando partículas maiores, chamadas hadrões, mas sempre a aniquilarem-se umas às outras. Criou-se assim a matéria e a antimatéria. Como as quantidades de matéria e de antimatéria eram iguais e ambas se aniquilavam mutuamente, o universo apresentava-se constituído por energia e partículas de existência efêmera e não havia hipóteses de se formar matéria duradoura. Está a perceber?"

"Sim."

"O que se passou, no entanto, foi que, por uma razão muito misteriosa, a matéria começou a ser produzida numa quantidade minusculamente maior do que a antimatéria. Para cada dez mil milhões de antipartículas, produziam-se dez mil milhões e uma partículas."

Rabiscou a comparação com a caneta de feltro.



10 000 000 000 Antipartículas

10 000 000 001 Partículas



"Está a ver?", disse, exibindo a anotação. "Uma diferença mínima, quase insignificante, não é? Mas, olhe, foi suficiente para produzir a matéria. Isto é, dez mil milhões de partículas eram destruídas por dez mil milhões de antipartículas, mas sobrava sempre uma que não era destruída. Foi justamente essa partícula sobrevivente que, juntando-se a outras sobreviventes nas mesmas circunstâncias, formou a matéria." Bateu repetidamente com o dedo na anotação. "Ou seja, o professor Siza percebeu que, para a criação do universo, tinha ocorrido mais um acaso extraordinário. Se o número de partículas e antipartículas permanecesse exatamente igual, como parece natural, não haveria matéria." Sorriu. "Sem matéria, nós não estávamos aqui."

"Estou a perceber", murmurou Tomás, assombrado. "Isto é... é espantoso."

"Tudo graças a uma partícula extra." Localizou nova página. "Outra questão onde o universo requer uma incrível afinação é a sua homogeneidade. A distribuição da densidade da matéria é muito homogênea, mas não é totalmente homogênea. Quando ocorreu o Big Bang, as diferenças de densidade eram incrivelmente pequenas e foram sendo amplificadas ao longo do tempo pela instabilidade gravitacional da matéria. O que o professor Siza descobriu é que esta afinação foi outro inacreditável golpe de sorte. O grau de não uniformidade é extraordinariamente pequeno, na ordem de um para cem mil, exactamente o valor necessário para permitir a estruturação do universo. Nem mais, nem menos. Se fosse marginalmente maior, as galáxias depressa se transformariam em densos aglomerados e formavam-se buracos negros antes de estarem reunidas as condições para a vida. Por outro lado, se o grau de não uniformidade fosse marginalmente mais pequeno, a densidade da matéria seria demasiado fraca e as estrelas não se formariam." Abriu as mãos. "Ou seja, era preciso que a homogeneidade fosse exactamente esta para que a vida fosse possível. As possibilidades de assim ser eram minúsculas, mas ocorreram."

"Estou a ver."

"A própria existência das estrelas com uma estrutura semelhante à do Sol, adequada à vida, resulta de um novo golpe de sorte." Desenhou uma estrela numa folha limpa. "Repare, a estrutura de uma estrela depende de um equilíbrio delicado no seu interior. Se a irradiação de calor for demasiado forte, a estrela transforma-se numa gigante azul e se for demasiado fraca a estrela torna-se uma anã vermelha. Uma é excessivamente quente e outra excessivamente fria e ambas provavelmente não têm planetas. Mas a maior parte das estrelas, incluindo o Sol, situa-se entre estes dois extremos, e o que é extraordinário é que os valores para além desses extremos são altamente prováveis, mas não ocorreram. Em vez disso, a relação das forças e a relação das massas das partículas dispõem de um valor tal que parecem ter conspirado para que a generalidade das estrelas se situe no estreito espaço entre os dois extremos, assim possibilitando a existência e predominância de estrelas como o Sol. Altere-se marginalmente o valor da gravidade, da força eletromagnética ou da relação de massas entre o electrão e o protão e nada do que vemos no universo se torna possível."

"Incrível", comentou Tomás, abanando a cabeça. "Não fazia a mínima idéia disto."

Luís Rocha folheou de novo as anotações.

"Depois de analisar as condições iniciais do universo, o professor Siza dedicou a sua atenção às micropartículas." Parou noutra página cheia de equações. "Por exemplo, pôs-se a estudar duas importantes constantes da natureza, justamente esta proporção das massas dos electrões e protões, designada constante Beta, e a força de interacção electromagnética, designada constante da estrutura fina, ou Alfa, e alterou-lhes os valores, calculando as consequências de tal alteração. Sabe o que ele descobriu?"

"Diga."

"Faça-se um pequeno aumento de Beta e as estruturas moleculares ordenadas deixam de ser possíveis, uma vez que é o actual valor de Beta que determina as posições bem definidas e estáveis dos núcleos dos átomos e que obriga os electrões a moverem-se em posições bem precisas em torno desses núcleos. Se o valor de Beta for marginalmente diferente, os electrões começam a agitar-se de mais e impossibilitam a realização de processos muito precisos, como a reprodução do ADN. Por outro lado, é o actual valor de Beta que, em ligação com Alfa, torna o centro das estrelas suficientemente quentes para gerarem reacções nucleares. Se Beta exceder em 0,005 o valor do quadrado de Alfa, não haverá estrelas. Sem estrelas, não há Sol. Sem Sol, não há Terra nem vida."

"Mas as margens são assim tão estreitas?"

"Estreitíssimas. E isto não é tudo."

"Então?"

"Olhe, se Alfa aumentar em apenas quatro por cento, o carbono não poderá ser produzido nas estrelas. E se aumentar apenas 0,1, não haverá fusão nas estrelas. Sem carbono nem fusão estelar, não haverá vida. Ou seja, para que o universo possa gerar vida, é necessário que o valor da constante da estrutura fina seja exatamente o que é. Nem mais, nem menos."

O físico localizou uma nova folha dos apontamentos.

"Outra coisa que o professor Siza analisou foi a força nuclear forte, aquela que provoca as fusões nucleares nas estrelas e nas bombas de hidrogênio. Ele fez os cálculos e descobriu que, se se aumentar a força forte em apenas quatro por cento, isso faria com que, nas fases iniciais após o Big Bang, todo o hidrogénio do universo se queimasse rápido de mais, convertendo-se em hélio 2. Isso seria um desastre, porque significaria que as estrelas esgotariam depressa o seu combustível e algumas se transformariam em buracos negros antes de existirem condições para a criação de vida. Por outro lado, se se reduzisse a força forte em dez por cento, isso afetaria o núcleo dos átomos de um modo tal que impediria a formação de elementos mais pesados do que o hidrogênio. Ora, sem elementos mais pesados, um dos quais é o carbono, não há vida." Bateu com o indicador naquelas contas. "Ou seja, o professor Siza descobriu que o valor da força forte dispõe de apenas um pequeno intervalo para criar as condições para a vida e, veja só, como que por providencial milagre é justamente nesse estreitíssimo intervalo que a força forte se situa."

"E inacreditável", murmurou Tomás, acariciando distraidamente o queixo. "Inacreditável."

Mais páginas repletas de insondáveis equações.

"Aliás, a conversão do hidrogênio em hélio, crucial para a vida, é um processo que requer absoluta afinação. A transformação tem de obedecer a uma taxa exacta de sete milésimos da sua massa para energia. Se se baixar uma fracção, a transformação não ocorre e o universo só tem hidrogênio. Se se aumentar uma fração, o hidrogênio esgota-se rapidamente em todo o universo."

Escreveu os valores.



0,006% - só hidrogênio

0,008% - hidrogênio esgotado



"Ou seja, para que exista a vida é necessário que a taxa de conversão do hidrogênio em hélio se situe exatamente neste intervalo. E, olhe a coincidência: situa-se mesmo!"

"Puxa! Mais uma sorte grande..."

"Sorte grande?", riu-se o físico. "Isto não é sorte grande. Isto é o jackpot dos jackpots!" Folheou as anotações. "Agora repare no carbono. Por diversas razões, o carbono é o elemento no qual assenta a vida. Sem carbono, a vida complexa espontânea não é possível, uma vez que só este elemento dispõe de flexibilidade para formar as longas e complexas cadeias necessárias para os processos vitais. Nenhum outro elemento é capaz de o fazer. O problema é que a formação do carbono só é possível devido a um conjunto de circunstâncias extraordinárias." Esfregou o queixo, concentrado na forma como iria explicar o processo. "Para formar o carbono, é preciso que o berílio radioativo absorva um núcleo de hélio. Parece simples, não é? O problema é que o tempo de vida do berílio radioactivo se limita a uma insignificante fracção de segundo." Gatafunhou o valor.

"Está a ver? O berílio radioativo só dura este instante." Tomás tentou avaliar quanto tempo seria aquele micronésimo de segundo.

"Mas isto não é nada", observou. "Nada de nada."

"Pois é", concordou o físico. "E, no entanto, é justamente neste período incrivelmente curto que o núcleo do berílio radioativo tem de localizar, colidir e absorver um núcleo de hélio, criando assim o carbono. A única forma de isto ser possível num instante tão efêmero é o das energias destes núcleos serem exatamente iguais no momento em que colidem. E, nova surpresa, são mesmo iguais!" Piscou o olho. "Hã? Grande sorte! Se houvesse uma discrepância ligeiríssima, mínima que fosse, não se poderia formar carbono. Mas, por extraordinário que pareça, não existe qualquer discrepância. Graças a um brutal golpe de sorte, a energia dos constituintes nucleares das estrelas situa-se exatamente no ponto adequado, permitindo a fusão." "É incrível", comentou Tomás.

"Mas olhe que houve ainda outro espantoso golpe de sorte", adiantou Luís Rocha. "É que o tempo de colisão do hélio é ainda mais efémero do que o curtíssimo tempo de vida do berílio radioactivo, e isso permite a reacção nuclear que produz o carbono. Para além do mais, há o problema do carbono sobreviver à subsequente actividade nuclear dentro da estrela, o que só é possível em condições muito especiais. E, veja só!, graças a uma nova e extraordinária coincidência, essas condições reuniram-se e o carbono não se transforma em oxigênio." Sorriu. "Admito que, para um leigo, isto pareça chinês. Mas garanto-lhe que um físico achará que tudo isto é uma sorte absolutamente inacreditável. São quatro jackpots numa única chave!"

"Caramba", riu-se Tomás. "Vamos ficar milionários!"

Luís Rocha pegou na resma de folhas repletas de anotações e contas e exibiu-as ao seu interlocutor.

"Está a ver isto? Está tudo cheio de descobertas do gênero. Eu e o professor Siza passamos os últimos anos a detectar e a coleccionar coincidências improváveis que são absolutamente imprescindíveis para que haja vida. A incrível afinação requerida nas diversas forças, na temperatura do universo primordial, na sua taxa de expansão, mas também as extraordinárias coincidências necessárias no nosso próprio planeta. Por exemplo, o problema da inclinação do eixo de um planeta. Devido às ressonâncias entre a rotação dos planetas e o conjunto dos corpos do sistema solar, a Terra deveria ter uma evolução caótica na inclinação do seu eixo de rotação, o que, como é óbvio, impediria a existência de vida. Um hemisfério poderia passar seis meses a tostar ao Sol, sem nenhuma noite, e outros seis meses a gelar à luz das estrelas. Mas o nosso planeta teve uma sorte inacreditável. Sabe qual foi?"

"Não."

"O aparecimento da Lua. A Lua é um objeto tão grande que os seus efeitos gravitacionais moderaram o ângulo de inclinação do nosso planeta, assim viabilizando a vida."

"Caramba, até a Lua!"

"É verdade", concordou o físico. "Sabe, todos os pormenores parecem conspirar para viabilizar a vida na Terra. Olhe, o fato de a Terra possuir níquel e ferro líquido em quantidade suficiente no núcleo para gerar um campo magnético imprescindível para defender a atmosfera das letais partículas emitidas pelo Sol. Isso é uma sorte. Outra extraordinária coincidência é o fato de o carbono ser o elemento sólido mais abundante no espaço térmico em que a água é líquida. A própria órbita da Terra é crucial. Cinco por cento mais próxima do Sol ou quinze por cento mais afastada bastaria para impossibilitar o desenvolvimento de formas complexas de vida." Voltou a colocar a resma dentro da pasta. "Enfim, a lista de coincidências e improbabilidades é aparentemente infindável."

Tomás remexeu-se na sua cadeira.

"Estou a perceber", disse, ainda tentando extrair um significado de toda aquela informação. "Mas o que quer dizer tudo isto?"

"Não é óbvio?", admirou-se o físico. "Isto quer dizer que não foi apenas a vida que se adaptou ao universo. O próprio universo preparou-se para a vida. De certo modo, é como se o universo sempre soubesse que nós vínhamos aí. A nossa mera existência parece depender de uma extraordinária e misteriosa cadeia de coincidências e improbabilidades. As propriedades do universo, tal como estão configuradas, são requisitos imprescindíveis para a existência de vida.

Essas propriedades poderiam ser infinitamente diferentes. Todas as alternativas conduziriam a um universo sem vida. Para haver vida, um grande número de parâmetros teria de estar afinado para um valor muito específico e rigoroso. E o que descobrimos nós? Essa afinação existe." Fechou a pasta. "Chama-se a isto Princípio Antrópico."

"Como?"

"Princípio Antrópico", repetiu o físico. "O Princípio Antrópico significa que o universo está concebido de propósito para criar vida."

Tomás abriu a boca.

"Estou a entender."

"Essa é a única explicação para o inacreditável rol de coincidências e improbabilidades que nos permitem estar aqui."

O historiador coçou a cara, pensativo.

"Isto é realmente esmagador", admitiu. "Mas pode ser tudo fruto do acaso, não pode? Quer dizer, é altamente improvável que eu ganhe a loteria, claro. Mas, afinal de contas, a loteria tem de sair a alguém, não tem? A lei das probabilidades diz que sim. É evidente que, na perspectiva da pessoa a quem sai a loteria, tudo isto parece altamente improvável. O fato, porém, é que alguém tinha de ganhar a loteria."

"É verdade", concordou Luís Rocha. "Só que, neste caso, estamos a falar em múltiplas loterias. Repare, saiu-nos a sorte grande quanto à afinação da expansão do universo, quanto à afinação da temperatura primordial, quanto à afinação da homogeneidade da matéria, quanto à ligeiríssima vantagem da matéria sobre a antimatéria, quanto à afinação da constante da estrutura fina, quanto à afinação dos valores das forças forte, electrofraca e da gravidade, quanto à afinação da taxa de conversão do hidrogênio em hélio, quanto ao delicado processo de formação do carbono, quanto à existência no núcleo da Terra dos metais que criam o campo magnético, quanto à órbita do planeta... enfim, quanto a tudo. Bastava os valores serem marginalmente diferentes num único destes fatores e, puf!, não havia vida. Mas não, eles coincidem todos. É extraordinário, não acha?" Fez um gesto vago com a mão. "Olhe, é um pouco como se eu fosse dar uma volta ao mundo e comprasse um bilhete da lotaria em cada país por onde passasse. Quando mais tarde chegasse a casa, descobria que me tinha saído a sorte grande em todos os bilhetes que comprei. Todos!" Riu-se. "É evidente que poderia ter uma sorte fantástica e sair-me a loteria num desses países. Já seria absolutamente extraordinário, no entanto, se me saísse a lotaria em dois países. Mas, se me saísse a loteria em todos os países, alto lá! Logo se desconfiava, não é? Não é preciso ser-se um grande gênio para perceber que teria de haver algo de anormal a acontecer... uma marosca, sei lá. Com toda a certeza estava aqui montado um esquema qualquer, não acha? Pois foi isso justamente o que aconteceu à vida. Saiu-lhe a sorte grande em todos os parâmetros. Todos!" Ergueu um dedo. "Portanto, só há uma conclusão a tirar: está aqui montado um esquema qualquer. Há marosca no ar."

"Pois, realmente... uh... parece de fato um pouco inexplicável toda esta sorte. Quando a esmola é grande, o pobre desconfia, não é?"

Luís Rocha inclinou-se na cadeira.

"O que eu lhe quero dizer, professor Noronha, é que, quanto mais observamos e analisamos o universo, mais concluímos que ele revela as duas características fundamentais inerentes à ação de uma força inteligente e consciente." Ergueu o polegar esquerdo. "Uma é a inteligência com que tudo está concebido." Acrescentou o indicador esquerdo. "Outra é a intenção de planear as coisas para criar vida. O Princípio Antrópico revela-nos que há intenção na concepção da vida. A vida não é um acidente, não é fruto do acaso, não é o produto fortuito de circunstâncias anormais. É o resultado inevitável da mera aplicação das leis da física e dos misteriosos valores das suas constantes." Fez uma pausa, aumentando o efeito dramático das suas palavras. "O universo está concebido para criar vida."

As palavras ressoaram pela Biblioteca Joanina, desfazendo-se no silêncio como uma nuvem no céu.

"Estou a ver", murmurou Tomás. "É espantoso. O que esta segunda via revela é... é assombroso, no mínimo."

"Sim", concordou Luís Rocha. "A descoberta do Princípio Antrópico constitui a segunda via da confirmação da existência de Deus." Voltou atrás na resma, localizando uma folha que já consultara. "Lembra-se da pista lançada por Einstein?"

"Sim."

O físico leu as anotações nessa folha.

"Einstein disse, e passo a citar: «o que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente, ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade»." Fitou Tomás. "Sabe qual é a resposta a esta questão?"

"A luz do que me disse, só pode ser não."

"Nem mais. A resposta é não." Luís Rocha abanou a cabeça. "Não, Deus não poderia ter feito o mundo de maneira diferente." Franziu o sobrolho e esboçou um sorriso leve, quase malicioso. "Mas há mais uma coisa que ainda não lhe disse."

"Mais uma? O quê?"

"Como é evidente, o Princípio Antrópico constitui um poderosíssimo indício da existência de Deus. Quer dizer, se tudo está assim tão inacreditavelmente afinado para possibilitar a existência de vida, então é porque o universo foi, de facto, concebido para a criar, não é? Mas mantém-se uma dúvida residual. Ela é muito pequena, absolutamente ínfima, mas permanece lá, como um espinho cravado no pé, um incômodo escolho que nos impede de ter a certeza absoluta." Baixou a voz, quase falando num sussurro. "E se tudo não passar de um monumental acaso? E se estas circunstâncias todas resultarem de um extraordinário jogo fortuito de espantosas coincidências? Ganhamos múltiplas loterias cósmicas, é certo e incontestável, mas, por muito improvável que isso nos pareça, há sempre a minúscula possibilidade de ter sido tudo um gigantesco acidente, não há?"

"Sim, claro", concordou Tomás. "Essa possibilidade existe."

"E, enquanto essa vaga possibilidade existir, não se pode dizer com toda a segurança que o Princípio Antrópico seja a prova final, pois não? É um poderoso indício, é verdade, mas não é ainda a prova."

"Pois. De fato, não é ainda a prova, não."

"Esta remota possibilidade de ser tudo um monumental acidente andou muito tempo a perturbar o professor Siza. Ele achava que esta desconfortável situação, esta maçadora incerteza marginal, fazia parte das habituais sutilezas de Deus, já descritas por Einstein. Isto é, tal como os teoremas da Incompletude mostram que não se pode provar a coerência de um sistema matemático, embora as suas afirmações não demonstráveis sejam verdadeiras, esta longínqua possibilidade impedia que ficasse provada, para além de qualquer dúvida, a existência de uma força inteligente e consciente por detrás da arquitectura do universo. Parecia ao professor Siza que Deus se voltava a esconder por entre o jogo de espelhos de uma derradeira subtileza, subtraindo a prova justamente quando estávamos prestes a tocá-la."

"Compreendo."

"Até que, no início deste ano, o professor Siza teve uma epifania."

"Perdão?"

"Fez-se-lhe luz."

"Como assim, fez-se-lhe luz?"

"O professor Siza estava um dia no seu gabinete a calcular o comportamento caótico dos electrões num campo magnético quando, de repente, teve a idéia que, de uma assentada, resolvia a derradeira incerteza e transformava o Princípio Antrópico, não apenas num poderoso indício da existência de Deus, mas na prova final."

Tomás voltou a remexer-se na cadeira. Inclinou-se um tudo-nada para a frente e estreitou os olhos.

"A prova final? Ele conseguiu a prova final?"

Luís Rocha manteve o sorriso suave.

"A prova final radica no problema do determinismo."

"Não entendo."

"Como já lhe disse, Kant escreveu certa vez que há três questões que nunca serão resolvidas: a existência de Deus, a imortalidade e a livre vontade. O professor Siza, no entanto, acreditava que estas questões, para além de serem resolúveis, estavam ligadas entre si." Pigarreou. "O problema da livre vontade é o de saber até que ponto nós somos livres nas nossas decisões. Durante muito tempo pensou-se que éramos, mas as descobertas científicas foram gradualmente limitando o campo da nossa liberdade. Foi-se descobrindo que as nossas decisões, embora pareçam livres, são na verdade condicionadas por um sem-número de fatores. Por exemplo, se eu decido comer, essa decisão foi realmente tomada pela minha consciência ou por uma necessidade biológica do meu corpo? A pouco e pouco começou a perceber-se que as nossas decisões não são verdadeiramente nossas. Tudo o que fazemos corresponde ao que nos impõem as nossas características intrínsecas, como o ADN, a biologia e a química do nosso corpo, para além de outros factores, em interacção dinâmica e complexa com fatores exteriores, como a cultura, a ideologia e todos os múltiplos acontecimentos que ocorrem na nossa vida. Por exemplo, descobriu-se que há pessoas que são tristes, não porque a sua vida seja triste, mas pela simples razão de que o seu corpo não produz seretonina, uma substância que regula o humor. Assim sendo, muitas das ações dessas pessoas deprimidas têm origem nessa sua insuficiência química e não no livre-arbítrio. Está a perceber?"

"Estar, estou", disse Tomás, hesitante. "O meu pai já me tinha falado nisso e confesso que continua a parecer-me um pouco chocante."

"O quê?"

"Essa idéia de que não dispomos de livre vontade, de que o livre-arbítrio não passa de uma

ilusão. Parece que não passamos de uns meros robôs..."

"Talvez, admito que sim", concordou Luís Rocha. "Mas olhe que é o que a ciência de certo modo concluiu. Repare, a matemática é determinista. Dois e dois são sempre quatro. A física é a aplicação da matemática no universo, com a matéria e a energia a obedecerem a leis e forças universais. Quando um planeta gira à volta do Sol ou um electrão à volta do núcleo do átomo, isso não acontece porque lhes apetece, mas porque a isso as leis da física os obrigam. Está claro?"

"Sim, tudo isso é evidente."

"Agora repare. A matéria tende a organizar-se espontaneamente, em obediência às leis do universo. Essa organização implica uma complexificação, não é? Ora, a partir de um determinado limiar em que os átomos se organizam em elementos, o seu estudo deixa de pertencer ao campo da física e transfere-se para a química. Ou seja, a química é a física complexificada. Quando os químicos se começam a complexificar ainda mais, nascem os seres vivos, que se caracterizam pela sua capacidade de se reproduzirem e pelo seu comportamento teleológico, isto é, por agirem em função de um objetivo: a sobrevivência. O que eu quero dizer com isto é que a biologia é a química complexificada. Quando a biologia se torna muito complexa, emerge a inteligência e a consciência, cujos comportamentos, por vezes, parecem bizarros, não obedecendo aparentemente a nenhuma lei. Mas os psicólogos e os psiquiatras já demonstraram que todos os comportamentos têm uma razão de ser, não ocorrem espontaneamente nem por obra e graça do Espírito Santo. Podemos não nos aperceber das suas causas, mas elas existem. Há até experiências documentadas que mostram que o cérebro toma uma decisão de actuar antes de a consciência se aperceber disso. O cérebro toma a decisão e depois informa a consciência dessa decisão, mas isso é feito com tal sutileza que a consciência passa a acreditar que foi ela que tomou a decisão. Isto significa que a psicologia é a biologia complexificada. Está a seguir o meu raciocínio?"

"Sim."

"Muito bem. O que eu estou a tentar dizer com isto tudo é que, quando se procura a raiz mais simples das coisas, verifica-se que a consciência tem por base a biologia, que tem por base a química, que tem por base a física, que tem por base a matemática. Ora, lembro-lhe mais uma vez que um electrão não vira para a direita ou para a esquerda porque lhe apetece, porque exibe livre vontade, mas porque a isso as leis da física o compelem. O comportamento do electrão pode ser indeterminável, devido à sua extrema complexidade caótica, mas está determinado." Pôs a mão no peito. "Como nós somos todos feitos de átomos, organizados de uma forma extraordinariamente complexa pelas leis da física, o nosso comportamento é também determinista. Mas, tal como o electrão, o nosso comportamento é igualmente indeterminável, uma vez que resulta de uma inerente complexidade caótica. Um pouco como o estado do tempo. A meteorologia está determinada mas é indeterminável, devido à complexidade dos factores e ao problema do infinito, e pequenas alterações nas condições iniciais provocam resultados imprevisíveis a prazo. É a velha história do bater de asas de uma borboleta que pode provocar uma tempestade no outro lado do planeta daqui a um tempo. Também os psiquiatras dizem que um acontecimento na infância pode condicionar o comportamento de um indivíduo na idade adulta, não é? E o que é isso senão o efeito borboleta aplicado à escala humana?"

"Estou a perceber."

"O que eu quero com isto dizer é que, embora as nossas decisões pareçam livres, na verdade não são. Muito pelo contrário, todas elas são condicionadas por fatores de cuja influência não temos, na maior parte das vezes, a mínima noção."

"Mas isso é terrível", observou Tomás. "Significa que não somos donos de nós mesmos. Se já está tudo determinado, para que é que nos vamos preocupar em... uh, sei lá, em olhar para os dois lados quando atravessamos uma rua?"

"Você está a confundir determinismo com fatalismo."

"Mas, se formos a ver bem, não são os dois a mesma coisa?"

"Não, não são. De um ponto de vista macrocósmico, tudo está determinado. Mas, do ponto de vista do microcosmos de cada pessoa, nada parece determinado porque ninguém sabe o que vai acontecer a seguir. Há muitos fatores externos que nos obrigam a tomar decisões. Por exemplo, se começa a chover, decidimos abrir o guarda-chuva. Essa decisão foi nossa, embora já estivesse determinada porque, ainda que não o soubéssemos, as leis da física conspiraram para que fosse chover naquele instante e o software incorporado na nossa mente determinou que o guarda-chuva era a resposta adequada àquela situação exterior. Está a perceber? A livre vontade é um conceito do presente. Mas o fato é que não temos possibilidade de alterar o que fizemos no passado, pois não? Está feito. Isso significa que o passado se encontra determinado. Ora, se passado e futuro existem ambos, embora em planos diferentes, o futuro também está determinado."

"O problema mantém-se", insistiu Tomás. "Não passamos de marionetes."

"Não pense assim", disse o físico. "Pense num jogo de futebol."

"Num jogo de futebol?"

"Imagine que você tem gravado o Itália-França da Final do Mundial 2006. Quando o jogo decorre, os jogadores estão a tomar decisões livres, não estão? Pegam na bola e atiram-na para um lado ou para o outro. Só que, ao ver a gravação, sabemos que tudo está determinado. O jogo vai acabar 1-1 e a Itália vai ganhar nos penaltis. Façam os jogadores o que fizerem naquela gravação, o resultado está determinado, nunca o conseguirão alterar. No final do DVD, a Itália ganha. Mais do que isso, todas as ações dos jogadores, que são livres naquele momento, estão já determinadas. Até a cabeçada do Zidane no Materazzi." Sorriu. "Pois a vida é como um jogo gravado. Tomamos decisões livres, mas elas já estão determinadas."

"Estou a perceber, mas isso não me consola", insistiu Tomás. "Feitas as contas, tal significa na mesma que não somos donos de nós próprios."

Luís Rocha manteve os olhos cravados no seu interlocutor.

"Tal significa algo de muito mais importante do que isso, meu caro", sentenciou. "Muito mais."

"Muito mais importante?", admirou-se o historiador. "Em que sentido?"

O físico deixou passar um instante enquanto considerava a melhor maneira de prosseguir a sua explicação.

"Lembra-se do Demônio de Laplace?"

"Uh... mais ou menos."

"Como sabe, a ciência descobriu que todos os acontecimentos têm causas e efeitos, sendo que as causas já são efeitos de um acontecimento anterior e os efeitos se tornam causas de acontecimentos seguintes. Tem isto presente, não tem?"

"Claro."

"Levando às últimas consequências o incessante processo das causas e efeitos, o marquês de Laplace determinou, no século XVIII, que o atual estado do universo é efeito do seu estado anterior e causa daquele que se lhe seguirá. Se conhecermos todo o estado presente de toda a matéria, energia e leis, até ao mais ínfimo pormenor, conseguiremos calcular todo o passado e todo o futuro. Para recorrer à expressão utilizada pelo próprio Laplace, o futuro e o passado estariam nesse caso presentes aos nossos olhos." Apontou para Tomás. "E agora pergunto eu: qual a consequência desta constatação?"

O historiador suspirou.

"Está tudo determinado."

"Bingo!", exclamou Luís Rocha. "Está tudo determinado. De um certo modo, o passado e o futuro existem. Ora, da mesma maneira que não podemos alterar o passado, também não podemos alterar o futuro, uma vez que ambos são a mesma coisa em tempos diferentes. Isto quer dizer que, se o passado está determinado, então o futuro também está determinado. Percebe? Aliás, esta descoberta foi confirmada pelas teorias da Relatividade, cujas equações são deterministas e estabelecem implicitamente que tudo o que aconteceu e acontecerá se encontra inscrito em toda a informação inicial do universo. Lembre-se que espaço e tempo são diferentes manifestações de uma mesma unidade, um pouco como o yin eo yang, de tal modo que Einstein concebeu o conceito de espaço-tempo. Assim, do mesmo modo que Lisboa e Nova Iorque existem, mas não no mesmo espaço, o passado e o futuro existem, mas não no mesmo tempo. De Lisboa não consigo ver Nova Iorque, da mesma maneira que do passado não consigo ver o futuro, embora ambos existam."

"Hmm-hmm."

"As teorias da Relatividade mostraram, por outro lado, que o tempo decorre de modo diferente em diversos sítios do universo, condicionado pela velocidade da matéria e pela força da gravidade. Os acontecimentos A e B ocorrem em simultâneo num ponto do universo e decorrem desfasadamente noutros lugares, num ponto primeiro o A e depois o B, enquanto num terceiro ponto ocorre primeiro o B e depois o A. Isto quer dizer que, num ponto do universo, o B ainda não ocorreu, mas vai ocorrer. Aconteça o que acontecer, vai ocorrer porque isso está determinado." Inclinou a cabeça, sempre de olhos fixos em Tomás. "E, pergunto-lhe eu agora, quando é que tudo foi determinado?"

"Quando?"

"Sim, quando?"

"Uh... sei lá! No início, suponho eu."

"Nem mais", exclamou Luís Rocha. "Tudo foi determinado no início, no instante em que o universo se formou. A energia e a matéria foram distribuídas de determinada forma e as leis e os valores das constantes foram concebidos de determinada maneira, e isso determinou logo ali a história que toda aquela matéria e energia teriam daí para a frente. Está a perceber?"

"Sim..."

"E não está a ver a relação que tudo isso tem com o Princípio Antrópico?"

Tomás hesitou, procurando a ligação entre as duas coisas. Mas a hesitação durou apenas um breve instante, o momento de inspirar e expirar, porque logo arregalou os olhos e, afogueado, estarrecido, viu enfim a prova completar-se.

"Uh... caramba", balbuciou, na atrapalhação embasbacada de quem vê a verdade emergir como uma luz que encadeia. "Isto... uh... isto é... é incrível."

"O que eu quero dizer é que o fato de estar tudo determinado significa que tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá está previsto desde o nascer do tempo. Mesmo esta nossa conversa já estava prevista. É como se nós fôssemos actores num palco colossal, cada um a interpretar o seu papel, em obediência a um monumental guião escrito por um argumentista invisível quando o universo começou." Deixou a ideia assentar. "Está tudo determinado."

"Meu Deus..."

"E é este o argumento que faltava e que, aos olhos do professor Siza, veio transformar o Princípio Antrópico em prova da existência de Deus. O universo foi concebido com um engenho tal que denuncia inteligência e com uma afinação tal que denuncia um propósito. A nossa existência não tem a mínima hipótese de ser acidental pelo simples facto de que tudo está determinado desde o início."

Abandonaram a Biblioteca Joanina lado a lado. A noite caíra sobre Coimbra e uma aragem fresca soprava baixo pelo quase deserto Pátio das Escolas. Tomás estacou num degrau e olhou para o relógio da torre; eram já nove da noite. Havia muito tempo que não comia, mas a angústia de saber que só dispunha de mais onze horas para resolver o enigma roubava-lhe o apetite. É certo que Luís Rocha já lhe desvendara uma significativa parte do mistério, mas faltava-lhe o derradeiro pormenor. A cifra que continha a fórmula de Deus.

"Diga-me uma coisa", murmurou Tomás. "Não faz idéia do que consiste a última mensagem cifrada por Einstein, pois não?"

O físico olhou-o de modo estranho.

"Venha comigo", disse, fazendo um gesto com a mão para o seguir.

Luís Rocha desceu os degraus e virou à esquerda, com Tomás no encalço. Caminharam até à porta seguinte, no edifício situado ao lado da biblioteca. O historiador cruzou o magnífico portal que decorava a porta e, quase sem querer, decerto por deformação de historiador, identificou-lhe logo o estilo manuelino.

"Isto é uma igreja?", interrogou-se.

"É a Capela de São Miguel", revelou o seu anfitrião, arrastando-o para o interior. "Começou a ser erguida no século XVI."

As paredes apresentavam-se cobertas de azulejos azulados e o teto mostrava-se ricamente ornamentado com as armas de Portugal, mas o que dominava a capela era o soberbo órgão barroco incrustado na parede, à direita; tratava-se de um instrumento belíssimo, trabalhado ao pormenor, com anjos sentados no topo a soprar trompetes.

"Por que me trouxe aqui?", quis saber Tomás.

O físico sentou-se na ponta de um banco forrado a couro e sorriu.

"Não acha que faz sentido estarmos na casa de Deus quando estamos a falar de Deus?"

"Mas o Deus que você me apresentou não é o Deus da Bíblia", observou o historiador, fazendo um sinal com a cabeça para a imagem de Cristo crucificado sobre o altar.

"Eu apresentei-lhe Deus, meu caro", retorquiu Luís Rocha. "O resto são detalhes, não acha?"

"Se você o diz..."

"Uns chamam-lhe Deus, outros chamam-lhe Yeovah, outros Allah, outros Brahman, outros Dharmakaya, outros Tao." Colocou a palma da mão ao peito. "Nós, os cientistas, chamamos-lhe universo. Diferentes nomes, diferentes atributos, a mesma essência."

"Estou a ver", comentou o historiador. "Mas isso não resolve o meu problema, pois não?"

"Qual é o seu problema?"

"Em que consiste a última mensagem cifrada por Einstein?"

Luís Rocha deslizou na bancada e fez sinal a Tomás, que permanecia de pé, para se sentar ao seu lado. O historiador fez-lhe a vontade, apesar da angústia que lhe roía a paciência.

"Conhece as matriuskas?", perguntou o físico.

"Quem?"

"As matriuskas."

"São aquelas bonecas russas, não são?"

"Sim. Quando se abre uma, há sempre outra por dentro." Sorriu. "Tal como uma matriuska, a descoberta da segunda via resolveu um enigma, mas revelou um outro. Se Deus existe e concebeu o universo com uma afinação tal que determinou a nossa criação, tal parece indiciar que a nossa existência é o objetivo do universo, não é verdade?"

"É lógico."

"Mas isso não faz sentido, pois não?"

"Acha que não?", admirou-se Tomás. "Para mim faz todo o sentido."

"Faz sentido porque é uma constatação reconfortante", argumentou Luís Rocha. "Afinal de contas, a ciência sempre nos disse que nós não passávamos de uma insignificância à escala do universo, absolutamente irrelevantes na imensidão da existência, não é? Havia físicos que até defendiam que a vida pouco mais era do que uma farsa e que a nossa presença não possuía qualquer utilidade."

"Pelos vistos estavam enganados."

"Pois", assentiu Luís Rocha. "Considerando que o universo foi incrivelmente afinado para criar vida e que isso não é nenhum acidente porque está determinado desde o início do tempo, sim, tenho

de concordar que os meus colegas estavam enganados. E, no entanto, a questão mantém-se: não faz sentido que a nossa existência seja o objetivo do universo."

"Mas por que diz isso?"

"Pela simples razão de que nós aparecemos numa fase relativamente inicial da vida do universo. Se fôssemos o objetivo, apareceríamos no fim, não é? Mas não aparecemos. Aparecemos pouco depois do início. Porquê?"

"Será que Deus estava com pressa em criar-nos?"

"Mas para quê? Para que nos divertíssemos? Para que pudéssemos passar o tempo a ver televisão? Para tomarmos uns copos numa esplanada? Para andarmos sempre a falar de futebol e de mulheres? Para elas andarem a ler revistas cor-de-rosa e a ver telenovelas? Para quê?"

Tomás encolheu os ombros.

"Sei lá", exclamou. "Mas qual é a relevância dessa questão?"

Luís Rocha cravou os seus olhos castanhos nos verdes de Tomás.

"Porque esta é a questão resolvida pela última mensagem de Einstein."

"Como?"

"A cifra inserida por Einstein em A Fórmula de Deus resolve o problema do propósito da nossa existência."

Tomás meteu a mão ao bolso e retirou o papelinho dobrado que o acompanhava sempre.

Desdobrou a folha e releu a mensagem cifrada.



See sign

!ya ovqo



"Isto?"

"Sim."

"Você está-me a dizer que esta charada resolve o enigma da nossa existência?"

"Sim. Ela revela o objetivo da existência da vida."

O historiador voltou a analisar a mensagem.

"Mas como sabe você isso?"

"Foi o professor Siza que me disse."

"O professor Siza conhecia o segredo?"

"O professor Siza conhecia a pista para o segredo. Ele disse-me que Einstein lhe revelou que esta mensagem cifrada continha o endgame do universo."

"O endgame?"

"É uma expressão muito popular na América. Significa o objetivo final de um jogo."

Tomás abanou a cabeça, tentando entender o que lhe era revelado.

"Desculpe, não estou a perceber", exclamou. "Onde está a tentar chegar?"

O físico fez um gesto largo.

"Olhe para tudo o que nos rodeia", disse. "Aqui neste planeta há vida em toda a parte. Nas planícies e nas montanhas, nos mares e nos rios, entre as pedras e até debaixo da terra. Para onde nos viremos, vemos vida. E, no entanto, sabemos que tudo isto é efêmero, não é?"

"Claro, todos morremos."

"Não é isso o que eu estou a dizer", corrigiu Luís Rocha. "Quando eu digo que é tudo efêmero, o que eu quero dizer é que tudo isto está condenado a desaparecer. O período em que a vida é possível no universo é muito limitado."

"O que quer dizer com isso?"

"O que eu quero dizer é que nada é eterno. O que eu quero dizer é que este período fértil em vida não passa de um pequeno episódio na história do universo."

"Um pequeno episódio? Não entendo..."

"Ouça, a vida na Terra depende da atividade do Sol, não é? Ora bem, o Sol não vai existir até à eternidade. Se fosse um homem, já teria mais de quarenta anos, o que significa que provavelmente já passou mais de metade da sua existência. Todos os dias a nossa estrela está a tornar-se mais luminosa, aquecendo gradualmente o planeta até acabar por destruir toda a biosfera, o que deverá acontecer dentro de mil milhões de anos. Como se isso não bastasse, daqui a quatro ou cinco mil milhões de anos todo o combustível que alimenta a atividade solar irá esgotar-se. O núcleo, num esforço desesperado para manter a produção de energia, deverá encolher-se até que os efeitos quânticos actuem para o estabilizar. Nessa altura, o Sol inchará tanto que se transformará numa estrela gigante vermelha, com a sua superfície a crescer até engolir os planetas interiores."

"Que horror!"

"Pois é", disse o físico. "Mas é melhor ir-se habituando à idéia. Isto vai ficar muito pouco agradável, sabe? A própria Terra acabará por ser engolida pelo Sol, mergulhando naquela fornalha infernal. E, quando todo o combustível solar for consumido, a pressão interna entrará em colapso e o Sol encolherá até ficar reduzido ao atual tamanho da Terra, arrefecendo como uma anã negra. O mesmo processo ocorrerá nas estrelas que se encontram no céu. Uma a uma, todas incharão e todas morrerão, umas encolhendo até se tornarem anãs, outras explodindo em supernovas."

"Mas podem nascer novas estrelas, não é?"

"Vão nascer novas estrelas. O problema é que já nascem cada vez menos estrelas, porque os elementos que as formam estão a desaparecer, ou seja, o hidrogênio primordial está a esgotar-se e os gases começaram a dissipar-se. O pior é que, daqui a alguns milhares de milhões de anos, deixarão de nascer estrelas. Só haverá funerais galácticos. Com a gradual morte das estrelas, as galáxias vão-se tornando cada vez mais escuras até que, um dia, se apagarão todas e o universo se transformará num imenso cemitério, cheio de buracos negros. Mas mesmo os buracos negros irão desaparecer, com o total regresso da matéria à forma de energia. Numa fase muito adiantada, apenas restará radiação."

"Puxa", exclamou Tomás, uma expressão sombria no rosto. "O futuro adivinha-se negro."

"Muito negro", concordou Luís Rocha. "O que levanta um grande problema ao Princípio Antrópico, não acha?"

"Claro. Se o universo está destinado a morrer dessa forma, qual o objetivo da vida? Por que razão Deus afinou a criação do universo para permitir o nascimento da vida se planejava destruí-la logo a seguir? Qual o propósito de tudo isto?"

"Foi justamente isso o que pensou o professor Siza. Para quê criar a vida se a idéia é destruí-la logo a seguir? Para quê tanto trabalho se o seu produto é tão efémero? Qual é, afinal, o endgame?'"

"Pois, esse é um problema sem solução, não é?"

"Não", disse o físico. "Pelo contrário, tem solução."

Tomás arregalou os olhos.

"O quê?", admirou-se. "Tem solução?"

"Sim, o professor Siza encontrou a solução."

"Então conte lá isso, homem", exclamou o historiador, impaciente. "Não me mantenha assim em suspenso!"

"Chama-se o Princípio Antrópico Final e nasce da constatação de que não faz sentido estar tudo organizado de modo a fazer aparecer vida para depois se deixar que ela desapareça dessa maneira. O Princípio Antrópico Final postula que o universo se encontra afinado para provocar o nascimento da vida. Mas não é uma vida qualquer. É a vida inteligente. E, após ter aparecido, a vida inteligente jamais desaparecerá."

O historiador ergueu uma sobrancelha, mantendo a outra cerrada, numa expressão incrédula.

"A vida inteligente jamais desaparecerá?"

"Sim."

"Mas... mas como é isso possível? Não foi você que acabou de dizer que a Terra vai ser destruída?"

"Sim, claro. Isso é inevitável."

"Então como é possível que ela nunca desapareça?"

"Teremos de sair da Terra, está visto."

"Sair da Terra?" Tomás riu-se. "Desculpe lá, mas isto já começa a parecer má ficção científica."

"Acha que sim? E, no entanto, alguns cientistas começam a encarar seriamente esse cenário, sabia?"

O sorriso do historiador desfez-se.

"A sério?"

"Claro. A Terra não tem futuro, vai ser destruída."

"E vamos para onde?"

"Ora! Vamos para outras estrelas, claro."

Tomás abanou a cabeça, baralhado.

"Desculpe, mas, mesmo que assim seja, o que resolve isso?"

"Bem... parece-me óbvio, não é? Se formos para as estrelas, escaparemos à inevitável destruição da Terra."

"E o que nos adianta isso? Não são as estrelas que também vão desaparecer? Não são as galáxias que também se vão apagar? Não é o universo que também vai morrer? Mesmo que consigamos escapar da Terra, estaremos apenas a adiar o inevitável, não lhe parece? Nessas circunstâncias, como é possível postular que a vida inteligente jamais desaparecerá?"

Luís Rocha percorreu com os olhos o altar maneirista da capela, mas a mente encontrava-se bem longe dali, mergulhada algures nos labirintos do pensamento.

"O estudo da sobrevivência e do comportamento da vida no futuro longínquo constituiu-se recentemente como um novo ramo da física", disse, a voz assumindo o tom neutral característico das exposições acadêmicas. "Sabe, as investigações em torno desta questão começaram com a publicação em 1979 de um artigo assinado por Freeman Dyson com o título Time witbout end: Physics and Biology in an Open Universe. Dyson esboçou aí um primeiro esquema, muito incompleto, que viria a ser reformulado por outros cientistas que se interessaram pela mesma questão, designadamente Steve Frautschi, o qual publicou um outro texto científico sobre o mesmo assunto na revista Science em 1982. Sucederam-se novos estudos em torno deste problema, todos eles assentes inteiramente nas leis da física e na teoria dos computadores."

Tomás manteve uma expressão perplexa.

"Acho tudo isso extraordinário", comentou. "Não fazia a mínima idéia de que tinha aparecido um novo ramo da física dedicado à sobrevivência da vida no futuro longínquo. Se quer que lhe diga, nem vejo como tal seja possível, considerando o assustador cenário que você traçou sobre a inevitável morte das estrelas e das galáxias. Como é possível que a vida sobreviva nessas condições?"

"Quer que eu lhe explique?"

"Faça o favor. Sou todo ouvidos."

"Olhe, vou-lhe dar apenas as linhas gerais, está certo? Os pormenores são demasiado técnicos e parecem-me desnecessários nesta nossa conversa."

"Tudo bem."

"A primeira fase já está a decorrer. Trata-se do desenvolvimento da inteligência artificial. É verdade que a nossa civilização dá ainda os primeiros passos na tecnologia dos computadores, mas a evolução está a ser muito rápida e é possível que, um dia, sejamos capazes de desenvolver tecnologia tão ou mais inteligente do que nós. Aliás, à atual taxa de evolução, os cálculos mostram que os computadores atingirão o nível humano de processamento de informação e capacidade de integração de dados no prazo de um século ou pouco mais. Quando chegar o dia em que atingirem o nosso nível, os computadores adquirirão consciência, conforme, de resto, sugere o teste Turing, não sei se já ouviu falar."

"O meu pai já me mencionou, sim."

"Ora bem, os engenheiros prevêem que, para além de podermos vir a desenvolver computadores tão inteligentes como nós, poderemos também desenvolver robôs que sejam construtores universais. Sabe o que são construtores universais, não sabe?"

"Uh... não."

"Os construtores universais são engenhos que podem construir tudo o que possa ser construído. Por exemplo, uma máquina de uma fábrica de automóveis não é um construtor universal, uma vez que só sabe construir automóveis. Mas os seres humanos são construtores universais, dado que têm a habilidade de construir tudo o que possa ser construído. Ora, os cientistas dão como adquirido que é possível conceber uma máquina que seja um construtor universal. O matemático Von Neumann já mostrou como esses construtores podem ser criados e a NASA diz que é possível fabricá-los em algumas dezenas de anos, desde que haja financiamentos para isso, claro."

"Mas qual a utilidade desses... construtores universais? Servem para nos poupar trabalho, é?"

Luís Rocha fez uma curta pausa, para efeitos dramáticos.

"Servem para garantir a sobrevivência da civilização."

O seu interlocutor cerrou as sobrancelhas, surpreendido.

"Ah é?"

"Ouça, não se esqueça de que a Terra está condenada a morrer. Dentro de mil milhões de anos, o aumento da atividade solar destruirá toda a biosfera. O Princípio Antrópico Final estabelece que, uma vez tendo aparecido, a inteligência jamais desaparecerá do universo. Assim sendo, a inteligência na Terra não tem alternativa: terá de abandonar o berço e espalhar-se pelas estrelas. Os instrumentos desse processo são os computadores e os construtores universais. Parece inevitável que, algures no futuro, os seres humanos terão de enviar construtores universais computadorizados para as estrelas mais próximas. Esses construtores universais terão instruções específicas para colonizarem os sistemas solares que encontrarem e construírem aí novos construtores universais, os quais, por sua vez, serão enviados para as estrelas seguintes, num processo em crescimento exponencial. Isto principiará naturalmente com a exploração das estrelas que nos são mais próximas, como Próxima Centauri e Alfa Centauri, e estender-se-á gradualmente às estrelas seguintes, designadamente Tau Ceti, Epsilon Eridani, Procyon e Sirius numa segunda fase."

"Isso é possível?"

"Alguns cientistas dizem que sim. O processo levará muito tempo, claro. Uns milhares de anos. Mas, se isso é muito tempo à escala humana, não o é à escala universal."

"E quanto custa uma coisa dessas? Imagino que seja uma fortuna..."

"Oh, nem por isso", exclamou o físico. "Os custos são relativamente baixos, sabe? É que basta construir quatro ou cinco destes construtores universais, não é preciso mais. Repare, uma vez chegado a um sistema solar, o construtor universal irá procurar planetas ou asteróides onde poderá extrair os metais e toda a matéria-prima de que necessitar. O robô começará a colonizar esse sistema e a povoá-lo com vida artificial pré-programada por nós ou até com vida humana, uma vez que é possível dar-lhes o nosso código genético para reprodução sempre que as condições encontradas forem adequadas. Para além disso, o robô terá também a missão de fabricar novos construtores universais, que enviará para as estrelas seguintes. A medida que avança, o processo de colonização das estrelas ir-se-á acelerando porque cada vez haverá mais e mais construtores universais. Mesmo que a civilização original desapareça, devido a um qualquer cataclismo, esta civilização continuará a espalhar-se autonomamente pela galáxia, graças aos construtores universais e ao seu programa automático de colonização."

"Mas, afinal, qual o objetivo de tudo isso?"

"Bem, o primeiro objetivo será o de explorar, não é? Queremos saber coisas sobre o universo, um pouco como as explorações que fazemos na Lua e nos planetas do sistema solar. Depois, à medida que a habitabilidade na Terra se tornar mais difícil, a prioridade será encontrar planetas para onde se possa transferir a vida."

"Transferir a vida? Assim como se fosse uma espécie de Arca de Noé galáctica?"

"Isso."

Tomás remexeu-se no banco da capela.

"Ouça lá, não acha que tudo isto assume uns ares assim de... de ficção científica muito fantasiada?"

"Sim, admito que sim. É normal que, agora, tudo pareça uma fantasia. Mas, quando as coisas se tornarem graves cá na Terra, com o aumento da atividade solar e a degradação da biosfera, garanto-lhe que, nessa altura, o problema vai começar a ser encarado muito a sério, ouviu? O que nos parece hoje ficção científica tornar-se-á amanhã realidade."

O historiador ponderou a idéia.

"Sim, talvez tenha razão."

"Com a proliferação exponencial dos construtores universais, toda a nossa galáxia acabará por ser colonizada. De um pequeno planeta da periferia, a inteligência espalhar-se-á pela Via Láctea."

"E assim a vida escapará à inevitável destruição da Terra."

"Eu não disse isso. Disse que a inteligência se espalhará pela galáxia."

"Não é a mesma coisa?"

"Não necessariamente. A natureza só consegue criar a inteligência através de circunstâncias excepcionais envolvendo os átomos de carbono, a cuja complexa organização nós designamos vida. Mas o carbono só é predominante em estado sólido numa estreita faixa térmica. Nós, seres humanos, estamos a desenvolver uma certa forma de vida através de outros átomos, como o silício, por exemplo. O que os construtores universais vão espalhar pela galáxia será a inteligência artificial contida nos chips dos seus computadores. Não é certo que a vida baseada nos átomos de carbono seja capaz de sobreviver a viagens de milhares de anos entre as estrelas. É possível que isso se faça, não digo que não, mas tal está longe de ser certo, está a perceber? O que temos a certeza, no entanto, é que a inteligência artificial será capaz de o fazer."

"Mas o que você me está a dizer é que a vida está condenada a extinguir-se..."

"Tudo depende do que se define por vida, claro. A vida baseada no átomo de carbono está condenada a extinguir-se, sobre isso não restam quaisquer dúvidas. Mesmo que se consiga fazer essa tal Arca de Noé galáctica e levar a vida tal como a conhecemos para um planeta de Próxima Centauri, por exemplo, o fato é que, um dia, todas as estrelas vão desaparecer, não é? Ora, sem estrelas, a vida baseada no átomo de carbono não é possível."

"Mas isso não é igualmente válido para a inteligência artificial?"

"Não necessariamente. A inteligência artificial não necessita de estrelas para funcionar. Necessita de fontes de energia, como é evidente, mas essas fontes não têm de ser necessariamente as estrelas. Pode ser a força forte contida no núcleo de um átomo, por exemplo. Repare, a inteligência pode encolher-se para espaços muito pequenos, através do recurso à nanotecnologia, e aí precisará de muito menos energia para se manter em funcionamento. Nesse sentido, e se definirmos a vida como um processo complexo de processamento de informação, a vida continuará. A diferença é que o hardware deixa de ser o corpo biológico e passam a ser os chips. Mas, se formos a ver bem, o que faz a vida não é o hardware, pois não? É o software. Eu posso continuar a existir, não num corpo orgânico feito de carbono, mas num corpo metálico, por exemplo. Se já há pessoas que vivem com pernas e coração artificial, por que não se poderá viver com um corpo todo artificial? Se se transferir toda a minha memória e todos os meus processos cognitivos para um computador e me derem umas câmaras para ver o que se passa em redor e um altifalante para falar, eu continuarei a sentir-me eu. Num corpo diferente, é certo, mas serei eu na mesma. Se formos a ver bem, a minha consciência é uma espécie de programa de computador e nada impede que esse programa continue a existir caso eu consiga criar um hardware adequado onde o inserir."

O historiador fez uma careta incrédula.

"Mas, ouça lá, acha que isso é mesmo possível?"

"Claro que é. Repare, esta questão está já a ser estudada por físicos, matemáticos e engenheiros, o que pensa você? E o fato é que eles já concluíram que, por muito extraordinário que tudo isto possa parecer agora, é perfeitamente possível de colocar em prática. Ora, sendo possível, não é difícil de concluir que será colocado em prática." Enfatizou a palavra será. "O postulado do Princípio Antrópico Final assim o exige, para garantir a sobrevivência da inteligência no universo."

"É incrível", exclamou Tomás. "E o que acontecerá quando, mesmo no final, a matéria estiver a desaparecer, convertendo-se em energia?"

O físico mirou o seu interlocutor.

"Bem, nós temos aqui duas situações. Ou o universo acaba no Big Freeze ou acaba no Big Crunch. Para já, o universo parece estar a expandir-se mesmo perto do ponto crítico, o que nos impede de ter a certeza sobre qual o seu destino. Mas, apesar de se ter constatado que a expansão do universo está em aceleração, o professor Siza acreditava que os princípios que observamos em toda a natureza apontam para um cenário de Big Crunch."

"Ah, sim? Porquê?"

"Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a aceleração da expansão do universo tem obrigatoriamente de acabar."

"Como sabe isso?"

"Por uma razão muito simples. Há galáxias que se afastam de nós a noventa e cinco por cento da velocidade da luz. Se a aceleração continuasse para sempre, haveria um momento em que a velocidade de expansão seria superior à velocidade da luz, não é? Ora, isso não pode ser. Portanto, a expansão do universo vai ter de abrandar, não há alternativa."

"Hmm", assentiu Tomás. "Mas isso não significa obrigatoriamente inversão de expansão para retração."

"Pois não", concordou o físico. "Mas significa que a aceleração é uma fase que terá de acabar. Daí à retração é um passo, cuja probabilidade decorre de uma constatação simples." Pigarreou. "Repare, se há coisa que nós estamos a verificar sempre que analisamos um sistema é que tudo tem um início e um fim. Mais importante ainda, tudo o que nasce acaba por morrer. As plantas nascem e morrem, os animais nascem e morrem, os ecossistemas nascem e morrem, os planetas nascem e morrem, as estrelas nascem e morrem, as galáxias nascem e morrem. Ora, nós sabemos que o espaço e o tempo nasceram, não é? Nasceram no Big Bang. Assim sendo, e seguindo o princípio de que tudo o que nasce acaba por morrer, também o espaço e o tempo terão de morrer. Porém, o Big Freeze estabelece que, tendo o espaço e o tempo nascido, nunca morrerão, o que viola esse princípio universal. Consequentemente, o Big Crunch é o destino mais provável do universo, uma vez que respeita o princípio de que tudo o que nasce acaba por morrer."

"Estou a perceber", murmurou Tomás. "Isso quer dizer que haverá um momento em que a matéria começa a recuar, é?"

"Não, não. O professor Siza achava que ela não vai recuar."

"Então o que irá acontecer?"

"Como já lhe expliquei, os cientistas acreditam que o universo poderá ser esférico, finito mas sem limites. Se nós conseguíssemos viajar sempre numa determinada direção, provavelmente acabaríamos de volta ao ponto de partida."

"Seríamos uma espécie de Fernão de Magalhães cósmicos."

"Exato. Ora, como as teorias da Relatividade mostram que o espaço e o tempo são diferentes manifestações da mesma coisa, o professor Siza acreditava que, de certo modo, também o tempo é esférico."

"O tempo é esférico? Não estou a perceber..."

"Imagine o seguinte", disse Luís Rocha, simulando uma esfera com as mãos. "Imagine que o tempo é o planeta Terra e que o Big Bang se situa no pólo Norte. Consegue imaginar isso?"

"Sim."

"Imagine que há vários navios que se encontram todos juntos no pólo Norte, o ponto do Big Bang. Um chama-se Via Láctea, outro chama-se Andrômeda, outro chama-se Galáxia M87. De repente, os navios põem-se a viajar todos para sul em direções diferentes. O que é que acontece?"

"Bem... uh... começam a afastar-se uns dos outros."

"Exato. Como a Terra é esférica e os navios estão a afastar-se do pólo Norte, isso significa que se estão a distanciar uns dos outros. Os navios afastam-se tanto que, a certa altura, deixam de se ver uns aos outros, não é?"

"Sim."

"O afastamento continua até chegarem ao equador, o ponto de apogeu. Mas, depois do equador, e porque a Terra é esférica, o espaço começa a encolher e os navios começam a aproximar-se uns dos outros. Até que, já perto do pólo Sul, se voltam a avistar."

"Exato."

"E colidem todos no pólo Sul."

Tomás riu-se.

"Se não tiverem cuidado."

"O professor Siza acreditava que o universo é assim. O espaço-tempo é esférico. Neste momento, e devido ao Big Bang e à expansão possivelmente esférica do espaço e do tempo, a matéria está a afastar-se. As galáxias vão ficando mais distantes umas das outras, até se distanciarem tanto que deixarão de se ver. Ao mesmo tempo vão morrendo aos poucos, transformando-se em matéria inerte. O frio será generalizado. Mas haverá um momento em que, após o apogeu da expansão, o tempo e o espaço começarão a encolher. Isso fará aumentar a temperatura da mesma maneira que um gás em retração aquece. O encolher do espaço-tempo acabará com uma brutal colisão final no pólo Sul do universo, uma espécie de Big Bang ao contrário. O Big Crunch."

"E é possível a vida sobreviver a isso?"

"A vida biológica, assente no átomo de carbono?" Abanou a cabeça. "Não. Essa vida desaparecerá muito antes disso, já lhe disse. Mas o postulado do Princípio Antrópico Final estabelece que a inteligência sobreviverá ao longo da história do universo."

"Mas como?"

"Espalhando-se pelo universo de tal modo que assumirá o controle de todo o processo."

Tomás riu-se de novo.

"Você deve estar a brincar."

"Estou a falar a sério. Muitos físicos acreditam que isto é possível e alguns até já demonstraram como."

"Ouça, você acredita mesmo que a inteligência vinda de uma coisa tão minúscula como a Terra pode assumir o controle de uma coisa tão imensa como o universo?"

"Isso não é tão incrível como pode parecer à primeira vista", argumentou Luís Rocha. "Não se esqueça do que diz a Teoria do Caos. Se uma borboleta pode afetar o clima do planeta, por que não poderá a inteligência afetar o universo?"

"Estamos a falar de coisas diferentes..."

"Estaremos?", interrogou-se o físico. "Tem a certeza?"

"Bem... uh... acho que sim. Apesar de tudo, o universo é muito maior do que a Terra, ou não é?"

"Mas o princípio é o mesmo. Repare, quando a vida apareceu na Terra, há mais de quatro mil milhões de anos, alguma vez alguém diria que aquelas moléculas minúsculas e insignificantes iriam evoluir tanto que acabariam um dia por assumir o controle de todo o planeta? Claro que não. Isso, se fosse dito naquela altura, seria risível. E, no entanto, cá estamos nós a discutir hoje os efeitos da ação humana na Terra. Dizer que a vida tomou o controle do nosso planeta é, nos tempos que

correm, uma perfeita banalidade. Ora, se, partindo de umas meras moléculas, ao fim de mais de quatro mil milhões de anos a vida tomou conta da Terra ao ponto de influenciar a sua evolução, o que impede que, daqui a quarenta mil milhões de anos, a inteligência tome conta de toda a galáxia ao ponto de também influenciar a sua evolução?"

"Hmm... estou a perceber..."

"Os mecanismos através dos quais esse controle é exercido são explicados por vários estudos científicos, os principais conduzidos por Tipler e Barrow, e não vale a pena eu entrar aqui em pormenores sobre a física e a matemática que envolve esse processo. O essencial, no entanto, é que o professor Siza estava convencido de que o postulado do Princípio Antrópico Final é verdadeiro. Ou seja, tendo aparecido no universo, a inteligência jamais desaparecerá. Se, para sobreviver, a inteligência tiver de controlar a matéria e as forças do universo, controlá-las-á."

"E é esse o propósito do universo? Permitir que a inteligência apareça?"

"Não sei se é esse o propósito do universo. Sei, no entanto, que a vida não é o objetivo, mas um passo necessário para permitir o aparecimento da inteligência."

"Estou a ver", suspirou Tomás, absorto nas implicações desta idéia. "Isso é... é incrível."

"É, não é?"

O historiador recostou-se na cadeira, contemplativo, mergulhado num espantado raciocínio. Mas o turbilhão de pensamentos logo foi assaltado por uma irrequieta dúvida e Tomás, emergindo da abstração, voltou-se para o seu interlocutor com o rosto contraído numa careta pensativa.

"Ouça lá, diz você que, uma vez tendo aparecido, a inteligência jamais desaparecerá, não é?"

"Sim, é o que prevê o Princípio Antrópico Final."

"Mas como poderá a inteligência sobreviver ao Big Crunch? Como poderá ela sobreviver ao fim do universo?"

Luís Rocha sorriu.

"A resposta a essa pergunta, meu caro, está inserida na última cifra deixada por Einstein."

"A que está no manuscrito?"


"Sim. É essa fórmula que revela o endgame do universo."



Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.