quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Budismo, Filosofia, Matemática, Taoísmo e Racionalismo = Um modo de ver a Deus

Fique atento: O português desse texto está escrito na forma de português de Portugal.

Abandonaram a salinha escura à entrada do templo de Maitreya, no alto do mosteiro de Tashilhunpo, desceram as escadas de pedra escura e viraram à esquerda; Tomás pegava no bodhisattva pelo braço, ajudando-o a caminhar, enquanto Ariana os seguia com as três almofadas apertadas no peito. Percorreram o estreito corredor do sector das capelas e entraram na primeira porta, desembocando num discreto pátio arborizado, à sombra do grande palácio do Panchen Lama.

Vários monges cumprimentaram Tenzing com reverência e o velho parou para lhes responder com um gesto. Depois retomou a marcha, fez sinal em direcção a uma árvore plantada num canteiro e encaminharam-se para lá.

"Yun Men disse", recitou o bodbisattva quando se aproximava do local, fazendo um esforço para se concentrar nos seus passos de ancião. "Ao caminhar, caminha apenas. Ao sentares-te, senta-te apenas. Acima de tudo, não vaciles."

Ariana depositou a grande almofada ao lado do tronco, num local escolhido pelo seu anfitrião, e Tomás ajudou-o a sentar-se. Olharam em redor e verificaram que o sítio tinha sido bem selecionado. Encontrava-se à sombra, mas as folhas deixavam passar muito sol, o que fazia com que aquele local não fosse demasiado frio nem demasiado quente, estava no ponto certo.

O tibetano fez um gesto na direção dos dois visitantes, que o observavam de pé.

"O Buda disse: senta-te, descansa, trabalha", declamou de novo. "Só contigo mesmo. Na orla da floresta vive feliz, sem desejo."

Os dois perceberam o convite. Ajeitaram as almofadas no chão, diante do bodhisattva, e sentaram-se.

Fez-se silêncio.

Escutavam-se, ao longe, os cânticos dos monges na recitação em coro dos mantras, os textos sagrados, o gutural om sempre presente; era aquele o som criador, a sílaba sagrada que precedeu o universo, a vibração cósmica que tudo criou e que tudo une. Pequenos pássaros estridulavam amorosamente pelos ramos, irrequietos e despreocupados, alheios ao timbre primordial que ecoava pelo mosteiro como um murmúrio de fundo, parecia o rumorejar plácido do mar ao abraçar a praia. Tudo ali era aprazível, sereno, eterno, um lugar perfeito para a contemplação; o pátio tranquilo convidava à meditação e à ascensão do espírito na incessante busca pela essência da verdade.

"O senhor mencionou há pouco o projecto de A Fórmula de Deus", começou Tomás. "Será que me pode explicar o que era isso?"

"O que querem que eu explique?"

"Bem... tudo."

Tenzing abanou a cabeça.

"Os chineses têm um provérbio", disse. "Os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

Tomás e Ariana entreolharam-se.

"Então abra-nos a porta."

O velho tibetano respirou fundo.

"Quando comecei a estudar física e matemática, em Darjeeling, achava tudo aquilo divertido porque me parecia um grande e belo jogo. Até que, quando cheguei a Colúmbia, tive um professor que me levou mais longe. Levou-me tão longe que o estudo deixou de ser um jogo para se transformar numa grande descoberta."

"O que descobriu?"

"Descobri que a ciência ocidental se aproximava estranhamente do pensamento oriental."

"O que quer dizer com isso?"

Tenzing fitou Tomás e depois Ariana.

"O que sabem vocês sobre as experiências místicas do Oriente?"

"O meu conhecimento limita-se ao Islã", disse a iraniana.

"Eu conheço o judaísmo e o cristianismo", indicou Tomás. "E aprendi agora umas coisas sobre budismo. Gostaria de saber mais, claro, mas nunca tive um mestre que me ensinasse."

O bodhisattva suspirou.

"Nós, os budistas, temos um provérbio", proclamou. "Quando o estudante está preparado, o mestre aparece." Deixou o pipilar insistente de um pássaro encher o pátio de musicalidade. "Para que possam entender a essência do derradeiro projeto de Einstein, é preciso que vocês percebam duas ou três coisas sobre o pensamento oriental." Pousou a palma da mão no tronco da árvore e deixou-a aí ficar por um momento. Depois retirou-a e encaixou-a na outra, ambas entrelaçadas agora no regaço numa pose contemplativa. "O budismo tem as suas origens remotas no hinduísmo, cuja filosofia assenta numa colecção de velhas escrituras anônimas redigidas em sânscrito antigo, os Vedas, os textos sagrados dos Arianos. A última parte dos Vedas chama-se Upanisbads. A idéia básica por detrás do hinduísmo é que a variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta não passa de diferentes manifestações da mesma realidade. A realidade chama-se Brahman e está para o hinduísmo como a Dharmakaya está para o budismo. Brahman significa crescimento e é a realidade em si, a essência interior de todas as coisas. Nós somos Brahman, embora possamos não o perceber devido ao poder mágico criativo de maya, que cria a ilusão da diversidade. Mas a diversidade, sublinho, não passa de uma ilusão. Só há um real e o real é Brahman."

"Desculpe, mas não estou a entender", interrompeu Tomás. "Sempre tive a idéia de que o hinduísmo estava cheio de deuses diferentes."

"Isso é parcialmente verdade. Os hindus têm muitos deuses, de facto, mas as sagradas escrituras tornam claro que todos esses deuses não passam de reflexos de um único deus, de uma única realidade. É como se Deus tivesse mil nomes e cada nome fosse de um deus, mas todos eles remetessem para o mesmo, diferentes nomes e diferentes rostos para uma única essência." Abriu os braços e uniu-os. "Brahman é todos e um. É ele o real e o único que é real."

"Entendi."

"A mitologia hindu assenta na história da criação do mundo através da dança de Shiva, o Senhor da Dança. Conta a lenda que a matéria se encontrava inerte até que, na noite do Brahman, Shiva iniciou a sua dança num anel de fogo. Nesse instante também a matéria começou a pulsar ao ritmo de Shiva, cujo bailar transformou a vida num grande processo cíclico de criação e destruição, de nascimento e morte. A dança de Shiva é o símbolo da unidade e da existência e é através dela que decorrem os cinco actos da divindade: a criação do universo, a sua sustentação no espaço, a sua dissolução, a ocultação da natureza da divindade e a concessão do verdadeiro conhecimento. Dizem as sagradas escrituras que, primeiro, a dança provocou uma expansão, em que se criou o material de construção da matéria e das energias. O primeiro estágio do universo foi preenchido por espaço, para onde tudo se expandiu com a energia de Shiva. Prevêem os textos sagrados que a expansão irá acelerar-se, tudo se misturará e, no fim, Shiva executará a terrível dança da destruição." O bodhisat-tva inclinou a cabeça. "Não lhe parece tudo isto familiar?"

"Incrível", murmurou Tomás. "O Big Bang e a expansão do universo. A equivalência entre massa e energia. O Big Crunch."

"Notável, sim", concordou o tibetano. "O universo existe devido à dança de Shiva e também ao auto-sacrifício do ser supremo."

"Auto-sacrifício? Como no cristianismo?"

"Não", disse Tenzing, abanando a cabeça. "A expressão sacrifício é usada aqui no seu termo original, no sentido de fazer com que algo se torne sagrado, e não no sentido de sofrimento. A história hindu da criação do mundo é a do ato divino de criar o sagrado, um acto pelo qual Deus se torna no mundo, o qual se torna Deus. O universo é um gigantesco palco de uma peça divina, na qual Brabman desempenha o papel do grande mágico que se transforma no mundo através do poder criativo da maya e da acção do karma. O karma é a força da criação, é o princípio ativo da peça divina, é o universo em acção. A essência do hinduísmo radica na nossa libertação em relação às ilusões da maya e à força do karma, levando-nos a perceber, através da meditação e do ioga, que todos os diferentes fenômenos captados pelos nossos sentidos fazem parte da mesma realidade, que tudo é Brabman." O bodhisattva pousou a mão no peito. "Tudo é Brabman", repetiu. "Tudo. Incluindo nós próprios."

"Não é isso o que defende também o budismo?"

"Exatamente", assentiu o velho tibetano. "Em vez de Brabman, preferimos usar a palavra Dharmakaya para descrever essa realidade una, essa essência que se encontra nos diferentes objetos e fenômenos do universo. Tudo é Dharmakaya, tudo está relacionado por fios invisíveis, as coisas não passam de diferentes rostos da mesma realidade. Mas esta não é uma realidade imutável, é antes uma realidade marcada pela samsara, o conceito de que as coisas são impermanentes, de que tudo muda sem cessar, de que o movimento e a transformação são inerentes à natureza."

"Mas, então, qual é a diferença entre hinduísmo e budismo?"

"Há diferenças na forma, há diferenças nos métodos, há diferenças nas histórias. Buda aceitava os deuses hindus, mas não lhes atribuía grande importância. Há imensas diferenças entre as duas religiões, embora a essência seja a mesma. O real é uno, apesar de parecer múltiplo. As coisas diferentes não passam de diferentes máscaras da mesma coisa, essa realidade última que é também impermanente. Ambos os pensamentos ensinam a ver para além das máscaras, ensinam a perceber que a diferença esconde a unidade, ensinam a caminhar para a revelação do uno. Mas recorrem a métodos diversos para chegar ao mesmo objetivo. Os hindus atingem a iluminação através do vedanta e do ioga, os budistas através do óctuplo caminho sagrado do Buda."

"Portanto, a essência do pensamento oriental radica na noção de que o real, embora assuma diferentes formas, é, na sua essência, a mesma coisa."

"Sim", disse Tenzing. "Apesar de as idéias fundamentais estarem já incorporadas no hinduísmo e no budismo, os taoístas vieram depois sublinhar alguns elementos essenciais já existentes no pensamento dominante."

"Ah, sim? O quê?"

O tibetano aspirou o ar puro que deslizava num sopro pelo pátio.

"Alguma vez leu o Tao Te Ching?"

"Uh... não."

"É o texto fundamental do Tao."

"E o que é o Tao?"

"Disse Chuang Tzu: se alguém perguntar o que é o Tao e outro responder, nenhum dos dois sabe o que é o Tao."

Tomás riu-se.

"Bem, então já vi que não nos pode explicar o que é o Tao..."

"O Tao é outro nome para Brahman e para Dharmakaya", enunciou o tibetano. "O Tao é o real, é a essência do universo, é o uno do qual deriva o múltiplo. O caminho taoísta foi enunciado por Lao Tzu, que resumiu o pensamento num conceito essencial."

"Qual?"

"O Tao Te Ching começa com palavras reveladoras", disse Tenzing. "O Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao. O Nome que pode ser nomeado não é o verdadeiro Nome."

O budista deixou as palavras ressoarem pelo pátio como folhas largadas à aragem do vento.

"O que quer isso dizer?"

"O Tao sublinhou o papel do movimento na definição da essência das coisas. O universo balança entre o yin e o yang, as duas faces que pautam o ritmo dos padrões cíclicos do movimento e através das quais o Tao se manifesta. A vida, disse Chuang Tzu, é a harmonia do yin e do yang. Tal como o ioga é o caminho hindu para a iluminação de que tudo é Brabman, tal como o óctuplo caminho sagrado do Buda é o caminho budista para a iluminação de que tudo é Dharmakaya, o taoísmo é o caminho taoísta para a iluminação de que tudo é Tao. O taoísmo é um método que usa a contradição, os paradoxos e a sutileza para chegar ao Tao." Ergueu a mão. "Disse Lao Tzu: para contrair uma coisa, é preciso expandi-la." Inclinou a cabeça. "É essa a sabedoria subtil. Através da relação dinâmica entre o yin e o yang, os taoístas explicam as mudanças da natureza. O yin e o yang são dois pólos antagônicos, dois extremos ligados um ao outro por um cordão invisível, duas diferentes faces do Tao, a unidade de todos os opostos. O real está em permanente mudança, mas as mudanças são cíclicas, ora tendem para o yin, ora voltam para o yang." Ergueu de novo a mão. "Mas, atenção, os extremos são ilusões do uno e tanto assim é que o Buda falou em não dualidade. O Buda disse: luz e sombra, longo e curto, preto e branco só podem ser conhecidos um em relação ao outro. A luz não é independente da sombra nem o negro do branco. Não há opostos, apenas relações."

"Não percebo", disse Tomás. "Quais são então as principais novidades do taoísmo?"

"O taoísmo não é bem uma religião, mas um sistema filosófico nascido na China. Algumas das suas ideias essenciais, porém, coincidem com o budismo, como a noção de que o Tao é dinâmico e de que o Tao é inacessível."

"Inacessível, em que sentido?"

"Lembre-se de Lao Tzu: o Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao. Lembre-se de Chuang Tzu: se alguém perguntar o que é o Tao e outro responder, nenhum dos dois sabe o que é o Tao. O Tao está para além do nosso entendimento. É inexprimível."

"Engraçado", sorriu Tomás. "É justamente o que diz a Cabala judaica. Deus é inexprimível."

"O real é inexprimível", proclamou Tenzing. "Já os Upanishads dos hindus se referiam à intangibilidade da realidade última em termos inequívocos: lá onde o olho não chega, a palavra não chega, a mente não chega, não sabemos, não compreendemos, não podemos ensinar. O próprio Buda, questionado por um discípulo que lhe pediu para definir a iluminação, respondeu com silêncio e limitou-se a levantar uma flor. O que Buda queria expressar com este gesto, que ficou conhecido por Sermão das Flores, é que as palavras só servem para objetos e ideias que nos são familiares. O Buda disse: um nome é imposto no que se pensa ser uma coisa ou um estado e isso separa-o de outras coisas e outros estados, mas, quando se vai ver o que está por detrás do nome, encontra-se uma maior e maior subtileza que não tem divisões." Suspirou. "A iluminação da realidade última, da Dharmakaya, está para além das palavras e das definições. Chamemos-lhe Brahman, Dharmakaya, Tao ou Deus, essa verdade mantém-se imutável. Podemos sentir o real numa epifania, podemos quebrar as ilusões de maya e o ciclo do karma de modo a atingirmos a iluminação e chegarmos ao real." Fez um gesto lento com a mão. "Porém, façamos o que fizermos, digamos o que dissermos, nunca o poderemos descrever. O real é inexprimível. Está para lá das palavras."

Tomás remexeu-se na almofada e olhou para Ariana, que permanecia calada.

"Desculpe, mestre", disse ele, uma ponta de impaciência a colorir-lhe o tom da voz. "Tudo isto é fascinante, sem dúvida, mas não responde às nossas dúvidas."

"Não responde deveras?"

"Não", insistiu Tomás. "Gostaria que nos explicasse em pormenor o projeto em que Einstein o envolveu."

O bodhisattva suspirou.

"Fez Yang disse: quando te sentes iludido e cheio de dúvidas, nem mil livros bastarão. Quando tiveres alcançado o entendimento, uma palavra já é de mais." Olhou para Tomás. "Entende?"

"Uh... mais ou menos."

"Essas suas palavras hesitantes parecem gotas de chuva, o que me lembra um ditado Zen", insistiu Tenzing. "As gotas de chuva batem na folha de basbo, mas não são lágrimas de pesar, é apenas a angústia de quem as escuta."

"Acha que estou angustiado?"

"Acho que você não me está a ouvir, português. Escuta-me, é verdade, mas não me ouve.

Quando ouvir, entenderá. Quando entender, uma palavra já será de mais. Enquanto não o fizer, contudo, nem mil livros lhe bastarão."

"Está-me a dizer que tudo isto tem relação com o projeto de Einstein?"

"Estou-lhe a dizer o que lhe estou a dizer", disse o tibetano, a voz muito tranquila, apontando-lhe o dedo como se o interpelasse. "Lembre-se do provérbio chinês: os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

"Muito bem", assentiu Tomás. "Já sei que me abriu a porta. É este o momento de eu entrar?"

"Não", murmurou Tenzing. "É este o momento de me escutar. Disse Lao Tzu: age sem fazer, trabalha sem esforço."

"Sim, mestre."

O bodhisattva cerrou as pálpebras por instantes. Parecia ter mergulhado na meditação, mas logo reabriu os olhos.

"Tudo isto que vos contei tinha eu já relatado em Princeton a Einstein, que se mostrou muito interessado na visão oriental do universo. O principal motivo desse interesse radicava na proximidade existente entre o nosso pensamento e pormenores cruciais das novas descobertas nos campos da física e da matemática, algo que eu tinha constatado na Universidade de Colúmbia e que fiz questão de explicar ao meu novo mentor."

"Desculpe, não estou a perceber", interrompeu Ariana, a sua mente de cientista reagindo com surpresa. "Proximidades entre o pensamento oriental e a física? Do que está o senhor a falar concretamente?"

Tenzing riu-se.

"A menina está a reagir exatamente como Einstein reagiu de início, quando eu lhe falei nisso."

"Desculpe, mas parece-me uma reacção natural para qualquer cientista", disse a iraniana. "Misturar ciência com misticismo é... enfim... é uma coisa um pouco estranha, não lhe parece?"

"Não, se ambos disserem a mesma coisa", replicou o tibetano. "Revelam os Upanishads: tal como o corpo humano, assim é o corpo cósmico. Tal como a mente humana, assim é a mente cósmica. Tal como o microcosmos, assim é o macrocosmos. Tal como o átomo, assim é o universo."

"Isso está onde?"

"Está nos Upanisbads, o último dos Vedas, os textos sagrados do hinduísmo." Tenzing ergueu o sobrolho branco. "Mas poderia encontrar-se num qualquer texto científico, não acha?"

"Bem... uh... de certo modo."

O bodhisattva ajeitou a sua posição sobre a grande almofada e respirou fundo.

"Lembram-se de Lao Tzu dizer que o Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao e que o Nome que pode ser nomeado não é o verdadeiro Nome? Lembram-se dos Upanishads se referirem à realidade última como sendo algo onde o olho não chega, a palavra não chega, a mente não chega, não sabemos, não compreendemos, não podemos ensinar? Lembram-se do Buda usar o Sermão das Flores para explicar que a iluminação da Dbarmakaya é inexprimível?"

"Sim..."

"E eu pergunto-vos: o que diz o Princípio da Incerteza? Diz-nos que não podemos prever com precisão o comportamento de uma micropartícula, apesar de sabermos que esse comportamento já está determinado. E eu pergunto-vos: o que dizem os teoremas da Incompletude? Dizem-nos que não podemos provar a coerência de um sistema matemático, apesar de as suas afirmações não demonstráveis serem verdadeiras. E eu pergunto-vos: o que diz a Teoria do Caos? Diz-nos que a complexidade do real é de tal grandeza que não é possível prever a evolução futura do universo, apesar de sabermos que essa evolução já está determinada. O real esconde-se por detrás da ilusão de tnaya. O Princípio da Incerteza, os teoremas da Incompletude e a Teoria do Caos provaram que o real é inacessível na sua essência. Podemos tentar aproximar-nos dele, podemos tentar descrevê-lo, mas nunca chegaremos verdadeiramente a ele. Haverá sempre mistério no fim do universo. Em última instância, o universo é inexprimível na sua plenitude, devido à subtileza da sua concepção." Abriu as mãos. "Regressamos, por isso, à questão essencial. O que é a matéria imprevisível a que o Princípio da Incerteza se refere senão Brahman? O que é a verdade que os teoremas da Incompletude mostram não poder ser provada senão Dhamarkaya? Eo que é o real infinitamente complexo e inatingível descrito pela Teoria do Caos senão Tao? O que é afinal o universo senão um gigantesco e inexprimível enigma?"

As perguntas feitas por Tenzing em tom tranquilo reverberaram com fragor nos ouvidos dos dois visitantes. Tomás e Ariana fitaram o velho tibetano sentado diante de si e digeriram devagar os estranhos paralelismos entre a ciência ocidental e o misticismo oriental.

"Depois há o problema da dualidade", retomou Tenzing. "Como devem estar recordados, o pensamento oriental estabelece o dinamismo do universo através da dinâmica das coisas. O Brahman dos hindus significa crescimento. A samsara dos budistas quer dizer movimento incessante. O Tao dos taoístas remete para a dinâmica dos opostos representada pelo yin e pelo yang. Tudo são opostos e os opostos são a mesma coisa, os dois extremos unidos por um fio invisível. Yin e yang. Lembram-se de eu vos ter dito isso?"

"Sim, claro."

"Então lembrem-se agora das teorias da Relatividade: a energia e a massa são a mesma coisa em estados diferentes. Então lembrem-se agora da física quântica: a matéria é, ao mesmo tempo, onda e partícula. Então lembrem-se agora das teorias da Relatividade: o espaço e o tempo estão ligados. Tudo é yin e yang. O universo move-se pelo dinamismo dos opostos. Os extremos revelam-se, afinal, diferentes expressões de uma mesma unidade. Yin e yang. Energia e massa. Ondas e partículas. Espaço e tempo. Yin e yang."

"O universo movimenta-se pela dialéctica dos opostos", comentou Tomás.

"O universo é uno, mas não é estático, é dinâmico", enunciou Tenzing. "Lembram-se de eu vos falar na criação do universo pela dança de Sbiva, através da qual a matéria começou a pulsar e a bailar ao ritmo dessa dança, transformando a vida num grande processo cíclico?"

"Sim."

"Então vejam o ritmo dos electrões em torno dos núcleos, vejam o ritmo das oscilações dos átomos, vejam o ritmo do movimento das moléculas, vejam o ritmo do movimento dos planetas, vejam o ritmo a que pulsa o cosmos. Em tudo há ritmo, em tudo há sincronismo, em tudo há simetria. A ordem emerge do caos como um bailarino rodopia na pista. Já repararam onde está o ritmo do cosmos?"

"Uh... o ritmo do cosmos?"

"Todas as noites, ao longo dos rios da Malásia, milhares de pirilampos juntam-se no ar e emitem luz em uníssono, obedecendo a um sincronismo secreto. Todos os instantes, ao longo do nosso corpo, os fluxos eléctricos bailam em cada órgão ao ritmo de sinfonias silenciosas, cujo compasso é coordenado por milhares de células invisíveis. Todas as horas, ao longo dos nossos intestinos, os restos dos alimentos são empurrados pela ondulação ritmada das paredes do tubo intestinal, obedecendo a uma estranha cadência ondulada. Todos os dias, quando o homem penetra a mulher e o seu fluido vital corre na direção do óvulo, os espermatozóides abanam as caudas ao mesmo tempo e na mesma direção, respeitando uma coreografia misteriosa. Todos os meses, sempre que algumas mulheres passam muito tempo juntas, os seus ciclos menstruais sincronizam-se de forma inexplicável. O que é isto senão o ritmo enigmático da música universal a que dança o cósmico Skiva?"

"Mas na vida é natural que haja sincronia", argumentou Tomás. "Há sincronia na respiração, há sincronia no coração, há sincronia na circulação do sangue..."

"Claro que a sincronia é natural", assentiu Tenzing. "É natural justamente porque a vida flui ao ritmo das batidas da dança de Shiva. Mas não é só a vida, sabe? Também a matéria que não é viva dança ao som da mesma música."

"A matéria que não é viva?"

"Isso foi descoberto no século XVII, quando Christiaan Huygens observou acidentalmente que os pêndulos de dois relógios de sala colocados lado a lado oscilavam em simultâneo sem variação. Por mais que os tentasse dessincronizar, alterando as oscilações dos pêndulos, Huygens constatou que, ao fim de apenas meia hora, os relógios voltavam a acertar as suas batidas, como se os pêndulos obedecessem a um maestro invisível. Huygens descobriu que a sincronia não é um ritmo exclusivo das coisas vivas. A matéria inerte dança ao mesmo ritmo."

"Bem... uh... é estranho, sem dúvida", reconheceu Tomás. "Mas não se pode generalizar a partir de um único caso descoberto entre a matéria inerte, não é? Por mais que esse caso pareça bizarro, é apenas um caso."

"Está enganado", atalhou o tibetano. "A dança sincronizada dos pêndulos de relógios colocados lado a lado foi apenas a primeira de muitas descobertas semelhantes. Descobriu-se que os geradores colocados em paralelo, mesmo que comecem a funcionar dessincronizados, sincronizam automaticamente o seu ritmo de rotação e é essa estranha batida da natureza que possibilita o funcionamento das redes elétricas. Descobriu-se que o átomo do césio oscila como um pêndulo entre dois níveis de energia e essa oscilação é ritmada com tal precisão que permitiu recorrer ao césio para criar os relógios atômicos, que só erram menos de um segundo em vinte milhões de anos. Descobriu-se que a Lua roda no seu eixo exatamente ao mesmo ritmo com que orbita a Terra e é esse bizarro sincronismo que permite que a Lua tenha sempre a mesma face voltada para nós. Descobriu-se que as moléculas da água, que se movem livremente, quando a temperatura desce aos zero graus juntam-se num movimento sincronizado, e é esse movimento que permite a formação do gelo. Descobriu-se que alguns átomos, quando colocados a temperaturas próximas do zero absoluto, começam a comportar-se como se fossem um único, são trilhões de átomos envolvidos num gigantesco bailado sincronizado. Essa descoberta permitiu que os seus autores ganhassem o Prémio Nobel da Física em 2001. O Comitê Nobel disse que eles tinham conseguido fazer com que os átomos cantassem em uníssono. Essa foi a expressão usada pelo Comitê no seu comunicado. Que os átomos cantassem em uníssono. Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?"

Tomás e Ariana permaneceram calados. A pergunta era retórica, presumiram, e o facto é que o bodhisattva os surpreendera com a revelação da existência deste ritmo, desta batida a que a matéria pulsa.

"Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?", repetiu Tenzing. "Ao ritmo da música cósmica, a mesma música que inspira Shiva na sua dança, a mesma música que faz com que dois pêndulos oscilem em sincronia, a mesma música que faz com que os geradores coordenem o seu movimento de rotação, a mesma música que faz com que a Lua organize o seu bailado de modo a ter sempre a mesma face voltada para a Terra, a mesma música que faz com que os átomos cantem em uníssono. O universo baila a um ritmo misterioso. O ritmo da dança de Shiva."

"E de onde vem esse ritmo?", perguntou Tomás.

O tibetano fez um gesto vago com as mãos, abarcando todo o pátio do templo.

"Vem da Dharmakaya, vem da essência do universo", disse. "Nunca ouviram falar das ligações entre a música e a matemática?"

Os dois visitantes assentiram com a cabeça.

"Pois a música do universo oscila ao ritmo das leis da física", afirmou Tenzing. "Em 1996 descobriu-se que os sistemas vivos e a matéria inerte se sincronizam em obediência a uma mesma formulação matemática. Quero com isto dizer que a batida da música cósmica que provoca os movimentos nos intestinos é a mesma que faz com que os átomos cantem em uníssono, a batida que põe os espermatozóides a abanarem a cauda em sincronia é a mesma que orquestra o gigantesco bailado da Lua em torno da Terra. E a formulação matemática que organiza este ritmo cósmico emerge dos sistemas matemáticos sobre os quais assenta a organização do universo: a Teoria do Caos. Descobriu-se que o caos é síncrono. O caos parece caótico, mas tem, na verdade, um comportamento determinista, obedece a padrões e é regido por regras muito bem definidas. Apesar

de ser síncrono, o seu comportamento nunca se repete, pelo que podemos dizer que o caos é determinista mas indeterminável. É previsível a curto prazo, devido às leis determinísticas, e imprevisível a longo prazo, devido à complexidade do real." Abriu as mãos. "Haverá sempre mistério no fim do universo."

Tomás remexeu-se no seu assento.

"Admito que tudo isso é misterioso", disse. "Mas acha que os sábios anónimos que descreveram a dança de Shiva sabiam da existência desse... desse ritmo cósmico?"

Tenzing sorriu.

"A propósito de como devemos pensar o mundo, disse o Buda: uma estrela ao anoitecer, uma bolha na corrente, um rasgo de luz numa nuvem de Verão, uma candeia tremulante, um fantasma e um sonho."

Os visitantes hesitaram, desconcertados com a resposta.

"O que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que o ritmo cósmico não é perceptível para quem não está iluminado. É preciso ser Buda para observar esse ritmo emergir das coisas. Como podiam os autores das sagradas escrituras saber da existência do ritmo cósmico se ele não é audível para quem não está preparado para o escutar?"

"Pode ser coincidência", argumentou Tomás. "Inventaram a história da dança de Shiva, um belo mito primordial, e depois, por coincidência, descobriu-se que existe um ritmo no universo."

O bodhisattva permaneceu um instante calado, como se estivesse a ponderar o argumento.

"Lembram-se de eu ter dito que os hindus defendem que a realidade última se chama Brahman e que a variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta não passa de diferentes manifestações da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que nós, os budistas, defendemos que a realidade última se chama Dharmakaya e que tudo está relacionado por fios invisíveis, sendo que todas as coisas não passam de diferentes rostos da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que os taoístas defendem que o Tao é o real, é a essência do universo, é o uno do qual deriva o múltiplo?"

"Sim."

"Será coincidência que, agora, a ciência ocidental venha dizer o mesmo que os nossos sábios orientais já diziam há dois mil anos ou mais?"

"Não estou a entender", indicou Tomás.

O bodhisattva respirou fundo.

"Como sabe, o pensamento oriental defende que o real é uno e as diferentes coisas não passam de manifestações da mesma coisa. Tudo está relacionado."

"Sim, já disse isso."

"A Teoria do Caos veio confirmar que assim é. O bater de asas de uma borboleta influencia o estado do tempo num outro ponto do planeta."

"É verdade."

"Mas a ligação da matéria entre si não se limita a um simples efeito dominó entre as coisas, em que cada uma influencia a outra. A verdade é que a matéria está ligada organicamente entre si. Cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa."

"Isso é o que diz o pensamento oriental", insistiu Tomás.

"É o que diz a ciência ocidental também", argumentou Tenzing.

O historiador fez um ar incrédulo.

"A ciência ocidental?"

"Sim."

"Onde é que está dito que a matéria tem ligação orgânica? Onde é que está dito que cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa? É a primeira vez que ouço tal coisa..."

O bodhisattva sorriu.

"Os senhores já ouviram falar na experiência Aspect?"

Tomás fez uma careta de ignorância, mas, ao mirar Ariana, percebeu que a referência lhe era familiar.

"O que é isso?", perguntou, dirigindo-se indistintamente ao tibetano e à iraniana.

"Já vi que a menina está a par desta experiência", observou Tenzing, o olhar perscrutador.

"Sim", confirmou ela. "Qualquer físico conhece essa experiência".

Ariana parecia um pouco abalada. Era notório que o seu espírito científico ocupava-se nesse instante com a avaliação das implicações da observação do velho budista, em particular as inesperadas relações entre a experiência que Tenzing mencionara e o conceito de Dharmakaya que acabara de conhecer.

"Alguém se importa de me explicar o que é isso?", insistiu Tomás.

Tenzing voltou a ajeitar o pano púrpura que lhe cobria o corpo. Observou Tomás fixamente.

"Alain Aspect é um físico francês que liderou uma equipa da Universidade de Paris-Sul numa experiência de grande importância, efectuada em 1982. É verdade que ninguém falou dela na televisão ou nos jornais. Em bom rigor, apenas os físicos e alguns outros cientistas a conhecem, mas não se esqueça do que lhe vou dizer." Ergueu um dedo. "É possível que, no futuro, a experiência Aspect venha a ser recordada como uma das experiências mais extraordinárias da ciência no século XX." Olhou para Ariana. "Concorda comigo, menina?"

Ariana assentiu com a cabeça.

"Sim."

O bodhisattva manteve o olhar preso na iraniana.

"Um ditado Zen diz: se encontrares no caminho um homem que sabe, não digas nada, não fiques em silêncio." Fez uma pausa. "Não fiques em silêncio", repetiu. Olhou para Ariana e apontou para Tomás. "Abre-lhe a porta."

"Quer que eu lhe descreva a experiência Aspect?"

Tenzing sorriu.

"Outro ditado Zen diz: quando um homem comum acede ao conhecimento, é um sábio. Quando um sábio acede ao conhecimento, é um homem comum." Voltou a indicar Tomás. "Faz dele um homem comum."

Ariana dançou com os olhos entre os dois homens, tentando ordenar o raciocínio.

"A experiência Aspect... uh... quer dizer....", gaguejou. Mirou o tibetano como se pedisse instruções. "Não se pode relatar a experiência Aspect sem falar no Paradoxo EPR, não é?"

"Nagarjuna disse: a sabedoria é como um lago límpido e fresco, pode-se entrar por um lado qualquer."

"Então tenho de entrar pelo lado do Paradoxo EPR", decidiu Ariana. Voltou-se para Tomás.

"Lembras-te de eu te ter contado que a física quântica previa um universo indeterminista, em que o observador faz parte da observação, enquanto a Relatividade preconizava um universo determinista, em que o papel do observador é irrelevante para o comportamento da matéria. Lembras-te disso, não é?"

"Claro."

"Ora bem, quando essa inconsistência se tornou clara, começaram os esforços para conciliar os dois campos. Presumia-se, e ainda se presume, que não pode haver leis discrepantes em função da dimensão da matéria, umas para o macrocosmos e outras diferentes para o microcosmos. Tem de haver leis únicas. Mas como explicar as divergências entre as duas teorias? O problema suscitou uma série de debates entre o pai da relatividade, Albert Einstein, e o principal teórico da física quântica, Niels Bohr. Para demonstrar que a interpretação quântica era absurda, Einstein focou um pormenor muito bizarro da teoria quântica: o de que uma partícula só decide a sua posição quando é observada. Einstein, Podolski e Rosen, cujas iniciais formam EPR, formularam então o seu paradoxo, baseado na ideia de medir dois sistemas separados, mas que tinham estado previamente unidos, para ver se eles tinham comportamentos semelhantes quando observados. Os três propuseram o seguinte: coloquem-se os dois sistemas em caixas, posicionadas em pontos diferentes de uma sala ou até a muitos quilômetros de distância, abram-se as caixas em simultâneo e meçam-se os seus estados internos. Se o seu comportamento for automaticamente idêntico, então isso significa que os dois sistemas conseguiram comunicar um com o outro instantaneamente. Ora, isto é um paradoxo. Einstein e os seus apoiantes observaram que não pode haver transferência instantânea de informação uma vez que nada anda mais depressa do que a luz." "E o que é que o físico quântico respondeu?"

"Bohr? Bohr respondeu que, se se pudesse fazer essa experiência, verificar-se-ia que havia, de fato, comunicação instantânea. Se as partículas subatômicas não existem até serem observadas, argumentou, então não poderão ser encaradas como coisas independentes. A matéria, disse, faz parte de um sistema indivisível."

"Um sistema indivisível", ecoou Tenzing. "Indivisível como a realidade última de Brahman. Indivisível como o real unificado por fios invisíveis da Dharmakaya. Indivisível como a unidade do Tao do qual deriva o múltiplo. Indivisível como a essência derradeira da matéria, o uno de que todas as coisas e todos os acontecimentos não são senão manifestações do mesmo, a realidade única com diferentes máscaras."

"Calma", contrapôs Tomás. "Isso é o que dizia a física quântica. Mas Einstein pensava de maneira diferente, não é?"

"Sem dúvida", assentiu Ariana. "Einstein achava que esta interpretação era absurda e considerava que o Paradoxo EPR, se pudesse ser testado, o demonstraria."

"O problema é que esse paradoxo não pode ser testado..."

"No tempo de Einstein, não podia", disse a iraniana. "Mas, logo em 1952, um físico da Universidade de Londres chamado David Bohm indicou que havia uma maneira de testar o paradoxo. Em 1964 coube a outro físico, John Bell, do CERN de Genebra, a tarefa de demonstrar

esquematicamente como levar a cabo a experiência. Bell não fez o teste, que só viria a ser concretizado em 1982 por Alain Aspect e uma equipa de Paris. É uma experiência complicada e difícil de explicar a um leigo, mas foi de fato efetuada."

"Os franceses testaram o paradoxo?"

"Sim."

"E então?"

Ariana olhou furtivamente para Tenzing antes de responder à pergunta de Tomás.

"Bohr tinha razão."

"Não percebo", disse o historiador. "Tinha razão, como? O que revelou a experiência?"

Ariana respirou fundo.

"Aspect descobriu que, sob determinadas condições, as partículas comunicam automaticamente entre si. Essas partículas sub-atómicas podem até estar em pontos diferentes do universo, umas numa ponta do cosmos e outras noutra, mas a comunicação é instantânea."

O historiador fez um ar incrédulo.

"Isso não é possível", disse. "Nada viaja mais depressa do que a luz."

"É o que diz Einstein e a Teoria da Relatividade Restrita", devolveu a iraniana. "Mas Aspect provou que as micropartículas comunicam instantaneamente entre si."

"Não haverá qualquer engano nesses testes?"

"Nenhum engano", assegurou a iraniana. "Novas experiências efectuadas em 1998, em Zurique e Innsbruck, usando técnicas mais sofisticadas, confirmaram tudo."

Tomás coçou a cabeça.

"Isso quer dizer que as teorias da Relatividade estão erradas?"

"Não, não, elas estão certas."

"Então como se explica esse fenômeno?"

"Só há uma explicação", disse Ariana. "Aspect confirmou uma propriedade do universo. Ele verificou experimentalmente que o universo tem ligações invisíveis, que as coisas estão relacionadas entre si de um modo que não se suspeitava, que a matéria possui uma organização intrínseca que ninguém imaginava. Se as micropartículas comunicam entre si à distância, isso não se deve a nenhum sinal que estejam a enviar umas às outras. Isso deve-se simplesmente ao fato de que elas constituem uma entidade única. A sua separação é uma ilusão."

"As micropartículas são uma entidade única? A sua separação é uma ilusão? Não estou a perceber..."

Ariana olhou em redor, tentando imaginar a melhor maneira de explicar o sentido das suas palavras.

"Olha, Tomás", disse, agarrando-se a uma idéia. "Já viste alguma vez uma transmissão televisiva de um jogo de futebol?"

"Já, claro."

"Numa transmissão televisiva há, por vezes, várias câmaras apontadas ao mesmo tempo ao mesmo jogador, não é? Quem estiver a ver as imagens de cada câmara e não souber a forma como a coisa funciona, poderá pensar que cada câmara capta um jogador diferente. Numa vê-se o jogador a olhar para a esquerda, na outra vê-se o mesmo jogador a olhar para a direita. Se a pessoa não conhecer esse jogador, seria capaz de jurar que se tratava de jogadores diferentes. Mas, olhando com mais atenção, percebe-se que sempre que o jogador faz um movimento para um lado, o jogador que está na outra imagem faz instantaneamente o movimento correspondente, embora para o outro lado. Isso resulta, claro, de uma ilusão. Na verdade, as duas câmaras mostram sempre o mesmo jogador, só que de ângulos diferentes. Percebeste?"

"Sim. Tudo isso é evidente."

"Pois foi uma coisa parecida que a experiência Aspect mostrou em relação à matéria. Duas micropartículas podem estar separadas pelo universo inteiro, mas quando uma se mexe, a outra mexe-se instantaneamente. Penso que isso acontece porque, na verdade, não se trata de duas micropartículas diferentes, mas da mesma micropartícula. A existência de duas é uma ilusão, da mesma maneira que a existência de dois jogadores em câmaras posicionadas em ângulos diferentes é uma ilusão. Nós estamos sempre a ver o mesmo jogador, nós estamos sempre a ver a mesma micropartícula. A um nível profundo da realidade, a matéria não é individual, mas uma mera representação de uma unidade fundamental."

Fez-se silêncio.

Tenzing pigarreou.

"A variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta são diferentes manifestações da mesma realidade", murmurou o budista em tom contemplativo. "Tudo está relacionado por fios invisíveis. Todas as coisas e todos os acontecimentos não passam de diferentes rostos da mesma essência. O real é o uno do qual deriva o múltiplo. É isso Brabman, é isso Dharmakaya, é isso Tao. Os textos sagrados explicam o universo." Fechou os olhos e inspirou o ar, numa postura meditativa. "Está escrito na Prajnaparamita, o poema de Buda sobre a essência de tudo."

Começou a recitar, como se entoasse um mantra sagrado:
"Vazia e calma e livre de si
É a natureza das coisas.
Nenhum ser individual
Na realidade existe.


Não há fim nem princípio,
Nem meio.
Tudo é ilusão,
Como numa visão ou num sonho.


Todos os seres do mundo
Estão para além do mundo das palavras.
A sua natureza última, pura e verdadeira,
É como a infinidade do espaço."

Tomás observou-o de olhos arregalados, ainda algo incrédulo.

"Foi assim que Buda descreveu a essência das coisas?", admirou-se. "É inacreditável."

O bodhisattva encarou-o com serenidade.

"Chou Chou disse: o Caminho não é difícil, basta que não haja querer ou não querer." Fez um gesto na direção do seu visitante. "Os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

Tomás ergueu a sobrancelha.

"É este o momento de eu entrar?"

"Sim."

Fez-se novo silêncio.

"O que devo então fazer?"

"Entrar."

O historiador olhou para o budista com uma expressão desconcertada.

"Entrar?"

"Um ditado Zen diz: apanha o cavalo vigoroso do teu espírito", declamou Tenzing. Sorriu. "Para a sua viagem, porém, tenho uma merenda que lhe confortará o estômago do espírito."

"Uma merenda?"

"Sim, mas primeiro vamos ao chá. Tenho sede."

"Espere", exclamou Tomás. "Que merenda é essa?"

"É A Fórmula de Deus."

"Ah!", exclamou o historiador. "Ainda não me explicou o que isso é."

"Não tenho feito outra coisa senão explicar-lhe. Você ouviu-me, mas não me entendeu."

Tomás corou.

"Uh..."

"Um dia, Einstein veio ter comigo e com o jesuíta e disse-nos: falei com o primeiro-ministro de Israel e ele fez-me um pedido. Tive muita relutância em aceitar o pedido, mas aceito agora e quero que vocês me ajudem neste projeto."

"Ele disse-lhe isso? Ele pediu-vos para colaborarem na... na construção de uma bomba atômica simples?"

O bodhisattva contraiu o rosto, surpreendido.

"Bomba atômica? Qual bomba atômica?"

"O projeto A Fórmula de Deus não é sobre a bomba atômica?"

Tenzing mirou Tomás com perplexidade.

"Claro que não."

Tomás olhou de imediato para Ariana e constatou que ela partilhava o seu alívio.

"Vês?", sorriu ele. "O que te dizia eu?"

A iraniana inclinou-se para a frente, como se assim pudesse apreender melhor tudo o que era dito. Já tinha lido o manuscrito e movia-a uma imensa curiosidade em percebê-lo finalmente. Além disso, dispunha de uma motivação adicional; ela sabia que aquela informação era crucial para travar a perseguição que o VEVAK inevitavelmente lhe iria fazer, a si e a Tomás. Mas não lhe bastava saber a verdade; tinha também de a provar. Foi por isso que encarou o tibetano com a ansiedade desenhada no rosto.

"Mas, então, explique-me", quase implorou. "O que é afinal o projeto A Fórmula de Deus?"

"Shunryu Suzuki disse: quando compreenderes totalmente uma única coisa, compreendes tudo."

"Compreender o que é A Fórmula de Deus significa compreender tudo?"

"Sim."

"Mas qual é o tema de A Fórmula de Deus?"

Tenzing Thubten ergueu a mão, deslizou-a lentamente pelo ar, esboçando num gracioso movimento de ginástica chinesa, e voltou a imobilizar-se. Respirou a brisa que pairava sobre o pátio do templo e sentiu o calor aprazível dos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores. Fez sinal a um monge que passava e pediu-lhe chá. Depois recolheu-se ao seu espaço e encarou os visitantes.

"É a maior busca jamais empreendida pela mente humana, a demanda do mais importante enigma do universo, a revelação do desígnio da existência."

Tomás e Ariana observavam-no, expectantes, incapazes quase de reprimirem a ansiedade. O bodhisattva percebeu a angústia que os sufocava e sorriu, disposto enfim a deslindar o segredo.

"A prova científica da existência de Deus."

Um monge aproximou-se com uma bandeja e, chegando junto da árvore, fez uma vênia e distribuiu chávenas pelos três. O budista pegou no bule e despejou um líquido quente em cada chávena, de maneira que logo todas elas começaram a fumegar. Tomás analisou o chá e, sentindo-lhe o odor característico, teve de virar a cara para o lado de modo a disfarçar a careta de repulsa.

"Chá de manteiga de iaque", constatou, trocando um olhar desanimado com Ariana.

"Temos de aguentar", sussurrou a iraniana dissimuladamente. "Tem paciência."

Os dois visitantes mal conseguiam conter a exasperação. Sentiam-se tremendamente excitados com as revelações que tinham acabado de escutar e queriam conhecer mais pormenores sobre o invulgar trabalho que o tibetano desenvolvera com Einstein. Em vez disso, viam-se obrigados a ingerir aquela nojenta mistela untuosa.

"Mestre", insistiu Tomás, ainda sem se atrever a provar o chá. "Explique-nos em que consiste A Fórmula de Deus."

O anfitrião calou-o com um gesto majestoso.

"Shunryu Suzuki disse: no espírito do principiante há muitas possibilidades, mas estas são poucas no espírito do sábio."

"O que quer dizer com isso?", perguntou Tomás, sem perceber qual a relevância desta afirmação naquele contexto.

"Se vocês forem sábios, saberão que há um momento para tudo", indicou Tenzing. "Este é o momento para o chá."

O visitante mirou a sua chávena com ar desalentado, não se achava capaz de tomar aquela zurrapa sebosa. Deveria dizer alguma coisa? Ou deveria engolir e permanecer calado? Se rejeitasse o chá, estaria a quebrar a etiqueta tibetana? Haveria um modo específico de o fazer? Como proceder afinal?

"Mestre", decidiu-se. "Não tem mais nada para além deste... uh... do chá?"

"E o que deseja que não seja chá?"

"Não sei... não tem nada para comer? Confesso que, depois da grande viagem de hoje, sinto alguma fome." Mirou Ariana. "Tu também tens fome?"

A iraniana fez que sim com a cabeça.

O bodhisattva emitiu uma ordem em tibetano e o monge volatilizou-se de imediato. Tenzing permaneceu calado, a sua atenção fixada na chávena como se o chá fosse, naquele instante, a única coisa importante em todo o universo. Tomás ainda tentou sondá-lo com algumas perguntas sobre o que aconteceu em Princeton, mas o anfitrião pareceu ignorá-lo e apenas quebrou o mutismo uma única vez.

"Um ditado Zen diz: tanto a fala como o silêncio transgridem."

Ninguém mais falou enquanto o tibetano tomava o seu chá.

O monge que trouxera o chá reapareceu entretanto. Desta vez a bandeja não trazia o bule, mas duas tigelas fumegantes. Ajoelhou-se junto dos visitantes e entregou a cada um uma tigela.

"Tkukpa", disse, com um sorriso. "Di shimpo du."

Nenhum dos dois percebeu, mas ambos agradeceram.

"Thu djitchi."

O monge voltou a apontar para a tigela.

"Thukpa."

Tomás olhou para o conteúdo. Era uma sopa de esparguete com carne e vegetais, de aspecto surpreendentemente convidativo.

"Thukpa?"

"Thukpa”.

O historiador olhou para Ariana.

"Pelos vistos, isto chama-se thukpa."

Comeram-na com gosto, embora suspeitassem que isso se devia mais à fome do que à qualidade da sopa. Em boa verdade, Tomás não era um adepto fervoroso da gastronomia tibetana; os poucos dias que ali vivera foram suficientes para perceber que os pratos locais, para além de não serem muito variados, não primavam pelo requinte de sabores. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a invasão chinesa, atrás da qual vieram inúmeros restaurantes sobretudo da cozinha de Sichuan, constituía mesmo uma bênção, porventura a única coisa boa que a anexação trouxera aos tibetanos.

Quando os visitantes acabaram a sopa, constataram que o bodhisattva já havia terminado o seu chá e parecia mergulhado na meditação. O monge que os servira levou as tigelas vazias e ficaram ambos ali sentados, aguardando que algo acontecesse.

Vinte minutos depois, Tenzing abriu os olhos.

"O poeta Bashô disse", começou. "Não procures as pisadas dos anciãos, procura o que eles procuraram."

"Perdão?"

"A vossa busca está demasiado centrada nos anciãos. Em mim, em Einstein, no Augusto. Não procurem os nossos caminhos, procurem o que nós procuramos."

"E se a vossa busca levar ao objetivo da nossa busca?", perguntou Tomás. "Não será mais fácil chegar ao nosso destino seguindo as pisadas de quem já lá chegou?"

"Krishnamurti disse: a meditação não é um meio para atingir um fim, é tanto o meio como o fim."

"O que quer dizer com isso?"

"Que a busca não é só um meio para chegar a um fim, ela é o próprio fim. Para alguém chegar à verdade, terá de percorrer o caminho."

"Eu entendo", disse Tomás. "Infelizmente, e por motivos que nos ultrapassam, o caminho que os anciãos seguiram é também o objetivo da nossa busca. Queremos conhecer a verdade, mas também precisamos de conhecer o caminho que vocês percorreram para chegar à verdade."

Tenzing ponderou por um momento esta resposta.

"Vocês têm os vossos motivos e eu tenho de os respeitar", concedeu. "A verdade é que Tsai Ken Tan disse: água que é demasiado pura não tem peixe." Suspirou. "Aceito que haja motivos para a vossa água não ser totalmente pura e vou então revelar-vos tudo o que sei sobre este projeto."

Os dois visitantes trocaram de olhar, aliviados por se abeirarem enfim do destino da sua demanda.

"Quando se encontrou em Princeton com Einstein, o primeiro-ministro de Israel desafiou-o a provar a existência ou inexistência de Deus. Einstein respondeu-lhe que era impossível fazer tal prova. Dias depois, no entanto, quase para distrair a mente dos trabalhos requeridos pela sua busca da Teoria de Tudo, resolveu interrogar-me sobre as respostas do pensamento oriental relativamente às questões do universo. Tal como vocês, mostrou-se chocado com a semelhança entre os registos das sagradas escrituras orientais e as mais recentes descobertas nos campos da física e da matemática. Impulsionado por isso, e sendo judeu, pôs-se a inspeccionar o Antigo Testamento em busca de pistas semelhantes. Será que a Bíblia esconderia, também ela, verdades científicas? Será que o saber antigo continha mais saber do que se sabia? Será que o conhecimento místico é mais conhecimento do que se pensava?"

Calou-se um instante, a fitá-los. Depois pegou num livro que se encontrava pousado ao seu lado e exibiu-o aos seus visitantes.

"Conhecem esta obra, presumo."

Tomás e Ariana observaram o espesso volume que se encontrava nas mãos do velho budista. Não tinham reparado ainda nele e não lhe conseguiram descortinar o título.

"Não."

"Jangbu trouxe-mo enquanto vocês se entretinham com a thukpa", explicou. Abriu o volume, folheou umas páginas e encontrou o que procurava. "O livro começa assim", indicou, preparando-se para ler em voz alta. "«No princípio, Deus criou os céus e a terra»", recitou. "«A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície das águas. Deus disse: faça-se luz. E a luz foi feita.»" Ergueu o rosto ossudo. "Reconhecem este texto?"

"É a Bíblia."

"Mais exatamente o início do Antigo Testamento, o Gênesis." Pousou o volume no regaço.

"Toda esta parte do texto interessou Einstein imensamente e por um motivo em particular. É que este trecho fundamental coincide, em linhas gerais, com a ideia do Big Bang." Afinou a voz. "É preciso perceber que, em 1951, o conceito de que o universo começou com uma grande explosão ainda não estava firme na mente dos cientistas. O Big Bang era apenas uma de várias hipóteses, sendo colocada em igualdade de circunstâncias com outras possibilidades, designadamente a do universo eterno. Mas Einstein tinha vários motivos para se inclinar para a hipótese do Big Bang. Por um lado, a descoberta de Hubble de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras indiciava que antes elas se encontravam juntas, como se tivessem partido de um mesmo ponto. Por outro, o Paradoxo de Olber, que só se resolve se o universo não for eterno. Um terceiro indício era a segunda lei da termodinâmica, que estabelece que o universo caminha para a entropia, pressupondo assim que houve um momento inicial de máxima organização e energia. E, finalmente, as suas próprias teorias da Relatividade, que assentavam no pressuposto de que o universo é dinâmico, estando em expansão ou em retração. Ora, o Big Bang enquadrava-se no cenário de expansão." Fez uma careta com a boca. "Havia, claro, o problema de saber que coisa era essa que contrariava a retração provocada pela gravidade. Para a resolver, Einstein chegou a propor a existência de uma energia desconhecida, a que chamou constante cosmológica. Mais tarde ele próprio rejeitou tal possibilidade, dizendo que essa ideia tinha sido o maior erro da sua vida, mas presume-se agora que Einstein tinha afinal razão e que há, de fato, uma energia desconhecida que contraria a gravidade e que provoca a expansão acelerada do universo. Em vez de se lhe chamar constante cosmológica, no entanto, chama-se-lhe agora energia escura." Observou os seus dois interlocutores. "Estão a seguir o meu raciocínio?"

"Sim."

"Muito bem", exclamou, satisfeito. "O que Einstein procurou determinar foi se haveria verdade escondida na Bíblia. Ele não estava à procura de verdades metafóricas nem de verdades morais, mas de verdades científicas. Será que era possível encontrá-las no Antigo Testamento?"

Tenzing observou os dois interlocutores, como se esperasse que eles respondessem à sua pergunta. Mas ninguém falou e o bodhisattva prosseguiu a sua exposição.

"Naturalmente que a grande dificuldade começava logo no Gênesis. Os primeiros versos da Bíblia estabelecem, para lá de qualquer dúvida, que o universo foi criado em seis dias. Seis dias apenas. Ora, do ponto de vista científico isto era um absurdo. Claro que se poderia dizer que o texto é todo ele metafórico, que Deus queria dizer seis fases, que isto ou que aquilo, mas Einstein acreditava que isso seria falsear a questão, não passaria de um truque para fazer com que a Bíblia tivesse razão a qualquer preço. Como cientista que era, não podia aceitar tal método. Mas o problema mantinha-se. A Bíblia dizia que o universo foi criado em seis dias. Isso não passava de uma evidente falsidade." Fez uma pausa. "Ou não seria?" Os olhos do velho budista saltitaram entre os dois visitantes. "O que acham vocês?"

Ariana remexeu-se sobre a almofada.

"Sendo muçulmana, eu não gostaria de contrariar o Antigo Testamento, que o Islão reconhece como sendo verdadeiro. Sendo cientista, eu não gostaria de o confirmar, uma vez que a criação do universo em seis dias constitui uma evidente impossibilidade."

O bodhisattva sorriu.

"Compreendo a sua posição", disse. "Repare que Einstein, sendo judeu, não era um homem religioso. Ele acreditava que algo transcendente poderia estar por detrás do universo, mas esse algo não seria certamente o Deus que mandou Abraão matar o seu filho para ter a certeza de que o patriarca Lhe era fiel. Einstein acreditava numa harmonia transcendente, não num poder mesquinho. Acreditava numa presença inteligente, não numa entidade bondosa. Acreditava numa força universal, não numa divindade antropomórfica. Mas seria possível encontrá-la na Bíblia? Quanto mais analisava as sagradas escrituras hebraicas, mais se convencia de que a resposta se escondia algures no Gênesis, e em particular na questão dos seis dias da Criação. Seria possível tudo criar em apenas seis dias?"

"O que entende pela palavra tudo?", perguntou Ariana. "Os cálculos relativos ao Big Bang prevêem que toda a matéria foi criada nas primeiras fracções de segundo. Antes do primeiro segundo ficar completo já o universo se tinha expandido um bilião de quilômetros e a superforça se tinha fragmentado em força da gravidade, força forte e força eletrofraca."

"Por tudo entende-se, aqui, a luz, as estrelas, a Terra, as plantas, os animais e o homem. Diz a Bíblia que o homem foi criado ao sexto dia."

"Ah, isso não é possível."

"Foi o que Einstein pensou. Não era possível a criação de tudo em apenas seis dias. Mas, apesar desta óbvia conclusão preliminar, reuniu-se connosco e pediu-nos para limparmos a mente e partirmos do princípio de que aquilo era possível. Como resolver o problema? Ora bem, colocada assim a questão tornou-se para todos evidente que o nó górdio se encontrava na definição dos seis dias. O que eram seis dias? A pergunta abriu uma pista a Einstein, que se debruçou sobre o assunto e arrastou-nos numa investigação fora do comum." Tenzing abanou a cabeça. "É uma pena eu não ter aqui comigo um exemplar do manuscrito que ele preparou. É uma coisa que me parece ser..."

"Eu li-o", atalhou Ariana.

O velho tibetano suspendeu o que estava a dizer e franziu o sobrolho.

"Você leu-o?"

"Li, sim."

"Leu o manuscrito intitulado Die Gottesformel?"

"Sim."

"Mas como?"

"É uma longa história", desabafou ela. "Mas sim, li-o. Era o professor Siza quem tinha o documento."

"O Augusto deixou-a ler?"

"Sim... uh... deixou. Como disse, é uma longa história."

Tenzing manteve o olhar fixo nela, inquisitivo.

"E o que achou?"

"Bem, é um documento... como direi? É um documento surpreendente. Estávamos à espera que contivesse a fórmula da construção de uma bomba atômica barata e de fácil concepção, mas o teor do texto deixou-nos... enfim, desconcertados. Havia equações e cálculos, como seria de esperar, mas tudo nos parecia imperceptível, sem um sentido claro nem uma direção definida."

O bodhisattva sorriu.

"É natural que assim vos tivesse parecido", murmurou. "O manuscrito foi elaborado para só ser entendido por iniciados."

"Ah, bom", exclamou Ariana. "Sabe, ficamos com a impressão de que ele remetia para um segundo manuscrito..."

"Qual segundo manuscrito?"

"Não existe um segundo manuscrito?"

"Claro que não." Sorriu. "Admito que, pela forma tortuosa como se encontra redigido, o documento crie essa sensação. Mas o que se passou foi que o texto sofreu uma encriptação sutil, percebe? A mensagem foi ocultada de modo a que ninguém se apercebesse sequer da sua existência."

"Isso explica muita coisa", exclamou Ariana. "Mas por que razão ele fez isso?"

"Porque precisava que todas as suas descobertas fossem confirmadas antes de serem divulgadas."

"Como assim?"

"Já lá vamos", disse Tenzing, fazendo um gesto com a mão. "Mas primeiro talvez fosse conveniente perceber o que, afinal, descobriu Einstein."

"Isso."

"Estudando o Livro dos Salmos, um texto hebraico com quase três mil anos, Einstein deparou-se com uma frase no salmo 90 que dizia mais ou menos o seguinte." Tenzing vidrou o olhar, em busca da memória do texto. "Mil anos à Tua vista são como um dia que passa." O budista fitou os dois visitantes. "Mil anos são como um dia que passa? Mas o que significa esta observação? Será apenas uma metáfora? Einstein concluiu que se tratava de uma metáfora, mas a verdade é que o salmo 90 remeteu Einstein instantaneamente para as suas próprias teorias da Relatividade. Mil anos à Tua vista representa o tempo numa perspectiva, um dia que passa representa o mesmo período de tempo noutra perspectiva."

"Não estou a entender", disse Tomás.

"É simples", adiantou Ariana, os olhos arregalando-se na excitação da compreensão. "O tempo é relativo."

"Como?"

"O tempo é relativo", repetiu ela.

"A menina é inteligente", disse Tenzing. "Pois foi isso mesmo que Einstein pensou ao ler o salmo 90. O tempo é relativo. É o que dizem as teorias da Relatividade."

"Desculpe, mas isso soa-me a coisa forçada", argumentou Tomás.

O bodhisattva respirou fundo.

"O que sabe o senhor sobre a concepção do tempo nas teorias da Relatividade?"

"Sei o que toda a gente sabe, acho eu", disse Tomás. "Conheço o paradoxo dos gêmeos, por exemplo."

"Pode enunciá-lo?"

"Enunciar o quê? O paradoxo dos gêmeos?"

"Sim."

"Para quê?"

"Para eu ver se entende verdadeiramente o que é o tempo."

"Bem... uh... tanto quanto sei, Einstein dizia que o tempo passa a velocidades diferentes consoante a velocidade do movimento no espaço. Para melhor explicar isso, deu o exemplo da separação de dois gêmeos. Um deles parte numa nave espacial muito rápida e o outro fica na Terra. O que está na nave espacial regressa um mês depois à Terra e descobre que o seu irmão é agora um velho. É que, enquanto na nave decorreu apenas um mês, na Terra decorreram cinquenta anos."

"Pois, é isso", assentiu Tenzing. "O tempo está relacionado com o espaço como o yin está relacionado com o yang. Em termos técnicos, as duas coisas nem se distinguem com clareza, de tal modo que se criou até o conceito de espaço-tempo. O factor-chave é a velocidade e a referência é a velocidade da luz, que Einstein estabeleceu como sendo constante. O que as teorias da Relatividade nos vieram dizer é que, por causa da constância da velocidade da luz, o tempo não é universal. Pensava-se antes que havia um tempo único global, uma espécie de relógio invisível comum a todo o universo e que media o tempo da mesma maneira em toda a parte, mas Einstein veio provar que não era assim. Não há um tempo único global. A marcha do tempo depende da posição e da velocidade do observador." Colocou os dois indicadores lado a lado. "Suponhamos que ocorrem dois acontecimentos, o A e o B. Para um observador que está equidistante, estes acontecimentos decorrem em simultâneo, mas quem estiver mais próximo do acontecimento A vai achar que o acontecimento A ocorreu antes do B, enquanto quem estiver mais próximo do B vai achar o contrário. E, na verdade, os três observadores têm razão. Ou melhor, têm razão segundo o seu ponto de referência, uma vez que o tempo é relativo à posição do observador. Não há um tempo único. Está claro isto?"

"Sim."

"Ora, tudo isto significa que não há um presente universal. O que é presente para um observador é passado para outro e futuro para um terceiro. Já viu o que isto significa? Uma coisa ainda não aconteceu e já aconteceu. Yin e yang. Esse acontecimento é inevitável porque, embora já tenha acontecido num ponto, ainda não aconteceu noutro, mas vai acontecer."

"Isso é uma coisa estranha, não é?"

"Muito", concordou o bodhisattva. "E, no entanto, é o que dizem as teorias da Relatividade. Além do mais, isto bate certo com a afirmação de Laplace de que o futuro, tal como o passado, já se

encontra determinado." Apontou para Tomás. "Indo de encontro ao paradoxo dos gémeos, é importante estabelecer que a percepção temporal do observador depende da própria velocidade a que ele se movimenta. Quanto mais próximo da velocidade da luz o observador se move, mais devagar circula o seu relógio. Quer dizer, para esse observador o tempo é normal, claro, um minuto continua a ser um minuto. É só para quem está a mover-se a velocidade mais lenta que parece que o relógio do observador rápido é mais lento. Da mesma forma, o observador que circula próximo da velocidade da luz vai ver a Terra a rodopiar à volta do Sol a grande velocidade. Parecer-lhe-á que o tempo da Terra está acelerado, que se passa um ano em apenas um segundo, mas, na Terra, um ano continua a ser um ano."

"Isso é apenas teoria, não é?"

"Em bom rigor, isto já está provado", disse Tenzing. "Em 1972 foi colocado um relógio de alta precisão dentro de um jato muito rápido, para comparar depois a sua medição do tempo com a de outro relógio de alta precisão que ficou em terra. Quando o aparelho voou na direcção leste, o relógio que seguia a bordo perdeu quase sessenta nanossegundos em relação ao terrestre. Quando se dirigiu para oeste, o relógio voador ganhou mais de duzentos e setenta nanossegundos. Esta diferença deve-se, como é evidente, à associação da velocidade do jacto com a velocidade da rotação da Terra. De qualquer modo, tudo isto foi depois confirmado pelos astronautas do Space Shuttle."

"Hmm."

"Ora bem, chegamos agora ao ponto crucial, que é o da gravidade." O velho tibetano endireitou-se sobre a almofada. "Uma das coisas que Einstein descobriu é que o espaço-tempo é curvo. Quando algo se aproxima de um objeto muito grande, como o Sol, é atraído por essa enorme massa, como se, de repente, chegasse ao pé de um fosso. É isso que explica a gravidade. O espaço curva-se e, como espaço e tempo estão relacionados, o tempo também se curva. O que a Teoria da Relatividade Geral veio dizer é que a passagem do tempo é mais lenta em locais de alta gravidade e mais rápida nos locais de fraca gravidade. Isto tem várias consequências, todas elas relacionadas entre si. A primeira é que cada objecto existente no cosmos possui a sua própria gravidade, fruto das suas características, o que significa que o tempo passa de modo diferente em cada ponto do universo. A segunda consequência é que o tempo na Lua é mais rápido do que o tempo na Terra e o tempo na Terra é mais rápido do que o tempo no Sol. Quanto mais massa tem o objecto, mais lento é o tempo à sua superfície. Os objetos com maior gravidade que se conhecem são os buracos negros, o que significa que, se uma nave se aproximasse de um buraco negro, veria a história do universo acelerar e chegar ao fim diante dos olhos dos seus tripulantes."

"Isso é extraordinário", comentou Tomás. "Mas qual a relevância de tudo isso para a nossa questão?"

"Isto é relevante para lhe explicar que Einstein resolveu partir do princípio de que os seis dias da Criação, conforme são descritos pela Bíblia, devem ser vistos à luz da relação entre o tempo na Terra e o espaço-tempo no universo. Quando fala num dia, o Antigo Testamento está a referir-se, como é evidente, a um dia terrestre. Mas, segundo as teorias da Relatividade, quanto maior é a massa de um objecto, mais lenta é a passagem do tempo à sua superfície. E a pergunta que Einstein colocou foi esta: quanto tempo à escala temporal do universo é um dia na Terra?"

A pergunta ficou a pairar por um instante.

"Começo agora a perceber as contas e equações que li no manuscrito", murmurou Ariana. "Ele estava a medir a passagem do tempo à escala do universo."

"Nem mais", sorriu Tenzing. "A própria Bíblia estabelece que a Terra só foi criada ao terceiro dia. Portanto, embora a medição fosse assente em dias terrestres, o Antigo Testamento está evidentemente a referir-se ao terceiro dia à escala do universo, uma vez que nos dois primeiros dias não existia Terra."

"Mas qual o ponto de referência para a medição?", quis saber a iraniana.

"Einstein baseou-se numa previsão feita em 1948 relativa à teoria do Big Bang: a existência de luz reminiscente do grande acto de criação do universo. Cada onda de luz funcionaria como um tique do grande tiquetaque universal. As ondas que chegam à Terra são esticadas dois vírgula doze frações de um milhão, quando comparadas com as ondas geradas pela luz na Terra. Isto significa, por exemplo, que, por cada milhão de segundos terrestres, o Sol perde dois vírgula doze segundos. A pergunta seguinte é: se o Sol perde mais de dois segundos em relação à Terra, quanto tempo perde todo o universo, que tem muito mais massa?"

"Espere aí", reagiu Ariana. "Que eu saiba, a gravidade do universo é diferente ao longo do tempo. No início, quando a matéria estava toda concentrada, a gravidade era maior do que mais tarde. Einstein considerou isso?"

"Claro que considerou." O budista juntou as duas mãos, como se estivesse a amassar um objeto. "Quando o universo começou, a matéria estava toda concentrada. Isso significa que a força de gravidade era inicialmente enorme e, consequentemente, a passagem do tempo muito lenta." As mãos separaram-se devagar. "À medida que a matéria se foi afastando, a passagem do tempo foi acelerando porque a gravidade foi-se tornando menor."

"E quanto mais lento era o tempo antes?", insistiu a iraniana.

"Um milhão de milhão de vezes", disse Tenzing. "Essa conta é confirmada pela medição das ondas de luz primordiais."

"Mas depois foi acelerando."

"Claro."

"Em que proporção?"

"Cada duplicação do tamanho do universo abrandou o tempo por um factor de dois."

"E o que resultou dessas contas?"

O bodhisattva abriu os braços.

"Uma coisa extraordinária", exclamou. "O primeiro dia bíblico durou oito mil milhões de anos. O segundo dia durou quatro mil milhões, o terceiro durou dois mil milhões, o quarto durou mil milhões, o quinto durou quinhentos milhões de anos e o sexto dia durou duzentos e cinquenta milhões de anos."

"Isso tudo junto dá quanto?"

"Quinze mil milhões de anos."

Ariana ficou um longo instante especada a olhar para o velho budista.

"Quinze mil milhões de anos?"

"Sim."

"Mas isso é uma coincidência espantosa!"

Tomás remexeu-se no seu lugar.

"Desculpem", interrompeu. "Expliquem-me lá isso. O que tem quinze mil milhões de anos assim de tão especial?"

Ariana olhou-o.

"Não estás a perceber, Tomás? A Bíblia diz que o universo começou há quinze mil milhões de anos."

"E então?"

"E então? Tu sabes quais são os actuais cálculos sobre a idade do universo?"

"Uh... não."

"Os dados científicos colocam a idade do universo algures entre os dez e os vinte mil milhões de anos. Ora, quinze mil milhões é exatamente o ponto intermédio. Os últimos cálculos mais exatos, aliás, aproximam a idade dos quinze mil milhões de anos. Por exemplo, uma avaliação recente da NASA colocou a idade do universo muito perto dos catorze mil milhões de anos."

"Hmm", considerou Tomás, pensativo. "É uma coincidência curiosa".

Tenzing inclinou a cabeça.

"Foi justamente isso que Einstein pensou. Uma coincidência curiosa. Tão curiosa que o encorajou a prosseguir as contas. Resolveu então comparar cada dia bíblico com os acontecimentos que ocorreram simultaneamente no universo."

"E o que deu isso?", perguntou Ariana.

"Oh, uma coisa muito interessante." O budista ergueu o polegar. "O primeiro dia bíblico tem oito mil milhões de anos. Começou há quinze vírgula sete mil milhões de anos e terminou há sete vírgula sete mil milhões de anos. A Bíblia diz que foi nessa altura que se fez luz e que foi criado o céu e a terra. Ora, sabemos que, nesse período, ocorreu o Big Bang e a matéria foi criada. Formaram-se as estrelas e as galáxias."

"Muito bem", assentiu Ariana. "E depois?"

"O segundo dia bíblico durou quatro mil milhões de anos e terminou há três vírgula sete mil milhões de anos. A Bíblia diz que Deus fez o firmamento nesse segundo dia. Sabemos hoje que foi nessa altura que se formou a nossa galáxia, a Via Láctea, e o Sol, que se encontram visíveis no nosso firmamento. Isto é, tudo o que se encontra nas redondezas da Terra foi criado neste período."

"Interessante. E o terceiro dia?"

"O terceiro dia bíblico, correspondente a dois mil milhões de anos terminados há um vírgula sete mil milhões de anos, fala na formação da terra e do mar e no aparecimento das plantas. Os dados científicos referem que a Terra arrefeceu neste período e apareceu água líquida, a que se seguiu imediatamente o aparecimento de bactérias e vegetação marinha, designadamente algas."

"Hmm."

"O quarto dia bíblico durou mil milhões de anos e terminou há setecentos e cinquenta milhões de anos. A Bíblia diz que apareceram neste quarto dia luzes no firmamento, designadamente o Sol, a Lua e as estrelas."

"Espere aí", interrompeu Tomás. "Mas o Sol e as estrelas à nossa volta não tinham aparecido no segundo dia?"

"Sim", concordou Tenzing. "Mas não eram ainda visíveis."

"Como assim, não eram ainda visíveis? Não estou a entender..."

"O Sol e as estrelas da Via Láctea apareceram no segundo dia bíblico, há cerca de sete mil milhões de anos, mas não eram visíveis da Terra. A Bíblia diz que só se tornaram visíveis ao quarto dia. Ora, o quarto dia corresponde justamente ao período em que a atmosfera da Terra se tornou transparente, deixando ver o céu. Corresponde também ao período em que a fotossíntese começou a lançar oxigênio para a atmosfera."

"Ah, já entendi."

Tenzing pegou no enorme volume pousado a seu lado e consultou as páginas iniciais.

"O quinto dia bíblico durou quinhentos milhões de anos e terminou há duzentos e cinquenta milhões de anos." Pousou o dedo sobre uma linha do texto. "Está aqui escrito que, neste quinto dia, Deus disse: que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos e que na terra voem aves, sob o firmamento dos céus." Mirou os dois visitantes. "Como é bom de ver, os estudos geológicos e biológicos apontam para este período o aparecimento dos animais multicelulares e de toda a vida marinha, mais os primeiros animais voadores."

"Incrível."

"E chegamos ao sexto dia bíblico, que começou há duzentos e cinquenta milhões de anos." O tibetano desceu umas linhas com o dedo. "Segundo a Bíblia, Deus disse: que a terra produza seres vivos, segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais ferozes, segundo as suas espécies. E, mais à frente, Deus acrescenta: façamos o homem." Levantou a cabeça. "Interessante, não?"

"Mas os animais existem há mais de duzentos e cinquenta milhões de anos", argumentou Ariana.

"Claro que existem", concordou Tenzing. "Mas não estes animais."

"O que quer dizer com isso?"

O bodhisattva fixou os olhos em Ariana.

"Diga-me, menina. Em termos biológicos, sabe o que aconteceu há exatamente duzentos e cinquenta milhões de anos?"

"Bem... houve uma grande extinção, não foi?"

"Nem mais", murmurou o tibetano. "Há duzentos e cinquenta milhões de anos ocorreu a maior extinção de espécies de que há conhecimento, a extinção do Permiano. Por um motivo ainda não determinado, mas que alguns supõem estar relacionado com o impacto de um grande corpo celeste na Antártida, cerca de noventa e cinco por cento das espécies existentes extinguiram-se de um momento para o outro. Até mesmo um terço dos insectos desapareceu, no que foi a única vez que ocorreu uma extinção de insectos em massa. A extinção do Permiano foi aquela em que a vida na Terra esteve mais próxima da erradicação total. Esse grande cataclismo ocorreu há exatamente duzentos e cinquenta milhões de anos. Curiosamente, no momento em que começou o sexto dia bíblico." Deixou assentar a idéia. "Depois dessa monumental extinção em massa, a Terra foi repovoada." Olhou de relance para o livro aberto nas suas mãos. "Já reparou nesta referência explícita da Bíblia aos répteis segundo as suas espécies?"

"Serão os dinossauros?"

"Dá essa impressão, não dá? De resto, coincide com o período. E, repare ainda, o homem surge no fim. Isto é, no fim da cadeia da evolução."

"E... é... surpreendente", comentou Ariana. "Mas acha que isso quer dizer que houve criação, não evolução?"

"Disparate!", retorquiu Tenzing. "Claro que houve evolução. Mas o que é interessante neste trabalho de Einstein é que a história bíblica do universo, quando o tempo é medido de acordo com as frequências de luz previstas pela teoria do Big Bang, bate certo com a história científica do universo."

Tomás pigarreou.

"É esse então o conteúdo do manuscrito de Einstein?"

"Sim."

"Quer dizer, então, que ele achava que a Bíblia estava certa..."

O bodhisattva abanou a cabeça.

"Não exatamente."

"Não? Então?"

"Einstein não acreditava no Deus da Bíblia, não acreditava num Deus mesquinho e ciumento e vaidoso que exige adoração e fidelidade. Ele achava que o Deus da Bíblia era uma construção humana. Ao mesmo tempo, porém, chegou à conclusão de que a sabedoria antiga encerrava algumas verdades profundas e começou a acreditar que o Antigo Testamento escondia um grande segredo."

"Um grande segredo? Qual segredo?"

"A prova da existência de Deus."

"Qual Deus? O Deus mesquinho, ciumento e vaidoso?"

"Não. O verdadeiro Deus. A força inteligente por detrás de tudo. O Brahman, o Dharmakaya, o Tao. O uno que se revela múltiplo. O passado e o futuro, o Alfa e o Omega, o yin eo yang. Aquele que se apresenta com mil nomes e não é nenhum, sendo todos. Aquele que veste as roupas de Sbiva e dança a dança cósmica. Aquele que é imutável e impermanente, grande e pequeno, eterno e efêmero, a vida e a morte, tudo e nada." Abarcou com os braços tudo em redor. "Deus."

"Einstein acreditava que o Antigo Testamento escondia a prova de Deus?"

"Não."

Tomás olhou para Tenzing, baralhado.

"Desculpe, não estou a entender. Julgava que tinha dito que Einstein achava que a Bíblia ocultava esse segredo."

"Ele começou por acreditar nisso, sim."

"E depois deixou de acreditar?"

"Não."

"Então? Não percebo..."

"O que aconteceu foi que o assunto deixou de ser matéria de crença."

"Como assim?"

"Einstein descobriu essa prova."

Fez-se um silêncio breve, com Tomás a digerir a implicação desta revelação.

"Ele descobriu a prova?"

"Sim."

"A prova da existência de Deus?" sim.

"Tem a certeza?"

"Absoluta. Ele encontrou a fórmula na qual assenta tudo. A fórmula que gera o universo, que explica a existência, que faz de Deus o que Ele é."

Tomás e Ariana entreolharam-se. A iraniana fez uma expressão admirada, mas não teceu quaisquer comentários. O historiador voltou a fitar o velho tibetano.

"E onde está essa fórmula?"

"No manuscrito."

"No Die Gottesformel”.

"Sim."

Tomás voltou a mirar Ariana. A mulher encolheu os ombros, como se dissesse que não tinha encontrado nada quando lera o documento.

"Em que sítio do manuscrito?"

"Encontra-se escondido."

O historiador esfregou o queixo, pensativo.

"Mas por que razão Einstein escondeu isso? Não acha que, se ele descobriu mesmo a prova da existência de Deus, a coisa mais natural era que a divulgasse aos quatro ventos? Por que motivo haveria ele de ocultar uma descoberta tão... tão extraordinária?"

"Porque precisava ainda de confirmar algumas coisas."

"Confirmar o quê?"

Tenzing respirou fundo.

"Todo este trabalho decorreu entre 1951 e 1955, ano em que Einstein morreu. O problema é que as tais frequências de luz geradas pelo Big Bang não passavam, nessa altura, de uma mera previsão teórica feita pouco tempo antes, em 1948. Como poderia o autor das teorias da Relatividade afirmar peremptoriamente que os seis dias da Criação correspondiam aos quinze mil milhões de anos da existência do universo se as contas se baseavam na previsão de umas frequências cuja existência se limitava a uma mera hipótese académica? Além do mais, naquela altura nem existiam cálculos tão rigorosos sobre a idade do universo como os que temos hoje disponíveis. Não se esqueça, por outro lado, de que a comunidade científica dessa época colocava a teoria do Big Bang em pé de igualdade com a teoria do universo eterno. Assim sendo, como poderia Einstein arriscar a sua reputação?"

Tomás balançou afirmativamente a cabeça.

"Estou a entender..."

"Einstein achou que não podia cair no ridículo e foi por isso que tomou duas precauções. A primeira foi deixar todas as suas descobertas registadas num manuscrito que designou Die Gottesformel. Com receio de que o documento caísse em mãos erradas, porém, teve o cuidado de encriptar subtilmente o texto, de modo a impedir que qualquer outra pessoa, que não eu ou o Augusto, entendesse o documento. Como medida adicional, cifrou explicitamente a prova da existência de Deus, utilizando um sistema de dupla cifra."

"Dupla cifra?"

"Sim."

"E qual a chave?"

Tenzing abanou a cabeça.

"Não sei", disse. "Apenas sei que a primeira chave está relacionada com o seu nome."

"Com o nome de Einstein?"

"Sim."

"Hmm", murmurou Tomás, refletindo sobre esta informação. "Terei de ver isso com atenção." Voltou a cravar os olhos no tibetano. "E onde está essa mensagem cifrada? É aquela charada que se encontra redigida perto do final do manuscrito?"

"Sim."

"Aquela que diz see sign e mais uma data de letras?"

"Essa mesmo."

"São seis letras em dois grupos, começando com um ponto de exclamação", lembrou Ariana, que tinha a sequência memorizada. "!Ya ovqo."

"Deve ser isso", admitiu Tenzing. "Não me lembro bem, como devem calcular. Já se passaram muitos anos."

"Eu entendo", disse Tomás. "Foram essas, portanto, as cautelas que ele teve?"

"Não", respondeu o tibetano. "A encriptação do segredo foi apenas a primeira precaução. Einstein não queria correr riscos e, ao entregar-nos o manuscrito, fez-nos assumir um segundo compromisso. O documento só poderia ser revelado se a teoria do Big Bang viesse a ser confirmada e as frequências de luz primordiais descobertas. Para além disso, requeria que nós continuássemos as pesquisas para procurar uma outra via de confirmação da existência de Deus."

"Uma outra via? Qual via?"

"Cabia-nos a nós encontrá-la", retorquiu Tenzing. "Lao Tzu disse: quando um caminho chegar a um termo, muda — depois de mudares, continuas em frente."

"Isso significa o quê?"

"Que eu e o Augusto seguimos caminhos diferentes para chegar ao mesmo destino. Depois de Einstein morrer, eu regressei ao Tibete e vim aqui para o mosteiro de Tashilhunpo, onde explorei a minha via de confirmação da existência de Deus. Após uma vida de meditação, alcancei a luz. Fundi-me com a Dharmakaya e tornei-me bodbisattva."

"E o professor Siza?"

"O Augusto seguiu o seu caminho. Ficou ele com o manuscrito e explorou ele a sua via de confirmação da existência de Deus."

"Que via era essa?"

"A via do Augusto era a via da ciência ocidental, claro. A via da física e da matemática."

"E o que aconteceu depois?"

Tenzing sorriu.

"Os requisitos de Einstein para a divulgação do manuscrito foram finalmente satisfeitos."

"Ah, sim? O que quer dizer com isso?"

"O primeiro passo ocorreu dez anos depois da morte de Einstein. Em 1965, dois astrofísicos americanos estavam a testar uma antena de comunicações de New Jersey quando depararam com um sopro de fundo proveniente de todos os pontos do universo. Julgaram que se tratava de uma avaria da antena, mas, após contactarem uma equipa de cientistas da Universidade de Princeton, perceberam finalmente o que era esse sopro. Tratava-se da luz primordial prevista na teoria do Big Bang e utilizada por Einstein para o cálculo da idade do universo. Esse fenómeno designa-se, hoje em dia, radiação cósmica de fundo e constitui o registo em microondas da primeira luz emitida pelo universo que chegou até nós. É uma espécie de eco do Big Bang, mas pode servir também de relógio cósmico."

"Já ouvi falar nisso", disse Tomás, reconhecendo a história. "Não é o tal ruído de fundo que aparece num ecrã de televisão quando o aparelho não está sintonizado em qualquer canal?"

"Sim", confirmou o tibetano. "Um por cento desse ruído provém da radiação cósmica de fundo."

"Portanto, com a descoberta da luz primordial, ficaram criadas as condições para a divulgação do manuscrito..."

"Não. Ficou satisfeita apenas a primeira condição. Faltava a segunda."

"A descoberta de uma segunda via de prova da existência de Deus?"

"Sim." Tenzing pousou a mão no peito. "Através do óctuplo caminho sagrado do Buda, eu segui a minha via e satisfiz essa condição."

"E o professor Siza?"

"Ele seguiu a sua via na Universidade de Coimbra."

"E satisfez a segunda condição?"

O bodhisattva esperou um instante antes de responder.

"Sim", disse por fim.

Tomás e Ariana inclinaram-se para a frente, muito atentos.

"Desculpe", disse o historiador. "Está-me a dizer que o professor Siza arranjou uma segunda maneira de provar a existência de Deus?"

"Sim."

"Mas... como?"

Tenzing suspirou.

"No início do ano, recebi um postal do meu amigo Augusto a dar-me a notícia. Disse-me ele que estavam finalmente satisfeitas as duas condições impostas em 1955 pelo nosso mestre. Como deve calcular, fiquei satisfeitíssimo e respondi-lhe de imediato, convidando-o a vir cá partilhar comigo essa grande notícia."

"Eu vi o seu postal", observou Tomás. "Ele veio cá?"

O velho tibetano esticou o braço e tocou na árvore com a palma da mão.

"Sim. Veio a Tashilhunpo e sentamo-nos justamente aqui, neste sítio, por baixo desta mesma árvore."

"E então?"

"Em relação à primeira precaução, tinham surgido dados adicionais. Um satélite designado COBE, lançado pela NASA para medir a radiação cósmica de fundo fora da atmosfera terrestre, detectou em 1989 pequeníssimas variações de temperatura nessa radiação, correspondentes a flutuações na densidade da matéria que explicavam o nascimento das estrelas e galáxias. Um outro satélite ainda mais desenvolvido, o WMAP, está desde 2003 a enviar novos dados relativos à radiação cósmica de fundo com revelações ainda mais pormenorizadas sobre o nascimento do universo. A nova informação confirmou que o universo emergiu de uma brutal inflação inicial ocorrida há cerca de catorze mil milhões de anos."

"E a segunda precaução?"

"O Augusto disse-me que tinha finalizado os estudos sobre a segunda via. Há agora uma segunda maneira de provar cientificamente a existência de Deus."

"E qual é?"

O bodhisattva abriu os braços num gesto de impotência.

"Ele não me contou. Disse apenas que se preparava para fazer o anúncio público e queria que, quando eu fosse interpelado pela comunidade científica, confirmasse ter sido testemunha do trabalho de Einstein."

"E o senhor?"

"Claro que concordei. Se tudo o que ele me pedia é que eu dissesse a verdade, eu iria dizer a verdade."

Fez-se silêncio.

"Mas qual é a segunda prova?"

"Não sei."

Tomás e Ariana entreolharam-se mais uma vez, sentindo-se tão perto do fim.

"Não haverá maneira de saber?"

"Há."

"Perdão?"

"Há uma maneira de saber."

"Qual?"

"Não consegue imaginar?"

"Eu? Não."

"Nagarjuna disse: a dependência mútua é a fonte do ser e da natureza das coisas, e estas nada são em si mesmas."

"O que quer dizer com isso?"

O bodhisattva sorriu.

"O Augusto tinha um professor auxiliar de quem dependia."

"O professor Luís Rocha", identificou Tomás. "Já o conheço. O que tem ele de especial?"

"Ele sabe tudo."



Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.