quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Qual a sua fome?

Fique atento: O português desse texto está escrito no português de Portugal.


Manuel afagou carinhosamente o braço do filho.

"Quero pedir-te desculpa por não ter sido um melhor pai."

"Oh, não diga isso. O pai foi formidável."

"Não fui e sabes que não fui." Arfou. "Fui um pai ausente, sem paciência para ti, mergulhado apenas nas minhas equações e teoremas, nas minhas investigações, no meu mundo."

"Não se preocupe. Sempre tive muito orgulho em si, sabe? É melhor um pai que procura nas equações os segredos do universo do que um pai que não sabe o que procura."

O velho matemático sorriu, encontrava energia onde supunha não a ter.

"Oh, sim. Muita gente não sabe o que procura." Fixou os olhos no teto. "A maior parte das pessoas passa por esta vida como se fosse sonâmbula, percebes? Querem possuir coisas, fazer dinheiro, consumir tudo. As pessoas estão tão inebriadas com o acessório que perdem de vista o essencial. Desejam um novo carro, uma casa maior, umas roupas mais vistosas. Querem perder peso, tentam agarrar a juventude, sonham em impressionar os outros." Respirou fundo, para recuperar o fôlego, e olhou para o filho. "Sabes por que o fazem?"

"Porquê?"

"Porque têm fome de amor. Têm fome de amor e não o encontram. É por isso que se voltam para o acessório. Os carros, as casas, as roupas, as jóias... tudo isso são substitutos. Não têm amor e procuram substitutos." Abanou a cabeça. "Mas isso não resulta. O dinheiro, o poder, a posse de coisas... nada substitui o amor. É por isso que, quando compram um carro, uma casa, uma peça de roupa, a satisfação que sentem é efêmera. Acabaram de comprar mas procuram já um novo carro, uma nova casa, uma nova peça de roupa. Procuram algo que não está ali." Nova pausa para respirar. "Nenhuma dessas coisas traz satisfação duradoura porque nenhuma dessas coisas é verdadeiramente importante. Estão todos com pressa à procura de algo que não encontram. Quando compram o que querem, descobrem que se sentem vazios. É porque o que compraram não era afinal o que queriam. Querem amor, não querem coisas. As coisas não passam de substitutos, de acessórios que mascaram o essencial."

"Mas o pai não foi assim..."

"Assim, como?"

"Assim... sempre a querer comprar coisas, sempre preocupado com o dinheiro."

"Eu andei noutras corridas. Nunca quis ter coisas, é verdade. Mas vivi a minha vida à procura do conhecimento."

"Está a ver? Isso é bem melhor, não?"

"Claro que é melhor. Mas o preço foi negligenciar-te. Não sei se isso foi bom." Arfou de novo. "Sabes, chego à conclusão de que o mais importante é dedicarmo-nos às pessoas. Dedicarmo-nos à família e à comunidade. Só isso nos preenche. Só isso tem significado."

"Mas não encontrou significado no seu trabalho?"

"Claro que sim."

"Está a ver? Valeu a pena."

"Mas o preço foi negligenciar a família..."

"Oh, não faz mal. Eu não me queixo. A mãe não se queixa. Estamos bem e temos orgulho em si."

Voltaram a abraçar-se e, por momentos, o silêncio impôs-se naquele pequeno quarto.

"Nunca percebi por que razão as pessoas não vêem o que me parece óbvio e andam tão ocupadas a fazer coisas irrelevantes. Zangam-se, afligem-se, preocupam-se com o que não tem importância, desgastam-se com o acessório. Foi um pouco por isso que me refugiei na matemática, sabes? Achei que nada era importante a não ser percebermos a essência do mundo que nos rodeia."

"Foi isso o que procurou na matemática?"

"Sim. Andei à procura da essência das coisas. Descubro agora, não sei se com embaraço, que, afinal, andei todo este tempo à procura de Deus." Sorriu. "Através da matemática, andei à procura de Deus."

"E encontrou-O?"

O velho pareceu desfocar os olhos.

"Não sei", acabou por dizer. "Não sei." Suspirou. "Encontrei algo de muito estranho. Não sei se é Deus, mas é algo de... extraordinário."

"O quê? O que encontrou?"

"Encontrei inteligência na concepção do universo. Isso é inegável. O universo está concebido com inteligência. Às vezes descobrimos uma coisa curiosa na matemática, uma qualquer brincadeira que, à primeira vista, parece absolutamente irrelevante. Mais tarde acabamos por constatar que aquela curiosidade numérica desempenha afinal um fundamental papel na estruturação de alguma coisa feita pela natureza."

"Estou a ver."

"O que é mais estranho na natureza é que tudo está ligado. Percebes? Mesmo coisas que parecem absolutamente díspares, sem relação umas com as outras... mesmo essas coisas estão ligadas. Quando raciocinamos, alguns electrões deslocam-se no nosso cérebro. Pois essa alteração ínfima acaba por influenciar, mesmo que minusculamente, a história de todo o universo." Fez um olhar sonhador. "Interrogo-me se nós não somos Deus."

"Como assim? Não percebo..."

"Ouve, Tomás. Deus é tudo. Quando olhas para algo da natureza, estás a ver uma faceta de Deus. Ora, como nós fazemos parte da natureza, nós somos também Deus. Entendes?"

"Estou a ver."

"É como se Deus fosse o nosso corpo e nós fôssemos os neurônios desse corpo." Falava pausadamente, como se cada palavra fosse a última, mas atrás dela vinha outra e outra ainda, o velho matemático descobria forças onde já não as parecia ter. "Imagina os nossos neurônios. Com toda a certeza, cada neurônio não sabe que faz parte da fatia pensante e consciente do meu corpo, pois não? Cada um acha que está separado de mim, que não faz parte de mim, que tem a sua individualidade. E, no entanto, a minha consciência é a soma de todas essas individualidades, as quais, aliás, não são individualidades nenhumas, são antes partes de um todo. Quer dizer, uma célula do meu braço não pensa, é como uma pedra na natureza, não tem consciência. Mas os neurônios no cérebro pensam. Eles, se calhar, encaram-me a mim como se fosse Deus e não se apercebem de que eu sou eles em conjunto. Da mesma maneira, nós, os seres humanos, talvez sejamos os neurônios de Deus e não nos apercebemos disso. Achamos que somos individuais, separados do resto, quando afinal fazemos parte de tudo." Sorriu. "Einstein acreditava que Deus é tudo o que vemos e ainda tudo o que não vemos."



Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.