sábado, 12 de outubro de 2013

Os fundamentos matemáticos que provam os indícios de Deus

Fique atento: O português desse texto está escrito no português de Portugal.

O pai levou uma boa meia hora a aparecer na cozinha. Tal como a mulher previra, vinha cheio de fome e, conforme previamente combinado, Tomás preparou-lhe os flocos de aveia em leite quente. Quando o prato ficou pronto, sentaram-se os dois na mesa da copa a saborear o pequeno-almoço.

"Então mostra lá outra vez aquelas duas frases do Einstein", pediu Manuel, enquanto levava uma colher à boca.

Tomás foi ao quarto buscar a folha com a frase rabiscada e voltou para a cozinha.

"É isto", disse, sentando-se no seu lugar com a folha aberta na mão. "Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", leu de novo. "A Natureza esconde o seu segredo devido a sua essência majestosa, nunca por ardil." Olhou para o pai. "Na boca de um cientista, na sua opinião o que quer esta frase dizer?"

O matemático engoliu os flocos que se encontravam na colher.

"Einstein estava a referir-se a uma característica inerente ao universo, que é a forma como os mistérios mais profundos se mantêm habilidosamente ocultos. Por mais que tentemos chegar ao âmago de um enigma, descobrimos que existe sempre uma sutil barreira que nos impede de o desvendar completamente."

"Não estou a perceber..."

O pai girou a colher no ar.

"Olha, vou-te dar um exemplo", disse. "A questão do determinismo e da livre vontade. Este é um problema que tem atormentado a filosofia durante muito tempo, e que foi retomado pela física e pela matemática."

"Está a referir-se à questão de saber se nós tomamos decisões livres ou não?"

"Sim", assentiu. "O que te parece?"

"Bem, eu diria que somos livres, não é?" Tomás fez um gesto para a janela. "Por exemplo, eu vim aqui a Coimbra porque assim o decidi livremente." Apontou para o prato em cima da mesa. "O pai está a comer essa papa porque assim o quis."

"Achas que sim? Achas que estas decisões foram mesmo livres?"

"Quer dizer... uh... acho que sim, claro."

"Não terás vindo a Coimbra por estares condicionado psicologicamente pelo fato de eu estar doente? Não estarei eu a comer esta papa por estar condicionado fisiologicamente a ela ou por me encontrar influenciado por um qualquer anúncio televisivo sem que disso tenha consciência? Hã?" Balançou as sobrancelhas para cima e para baixo, a enfatizar o que acabara de dizer. "Até que ponto somos mesmo livres? Não se estará a dar o caso de tomarmos decisões que parecem ser livres mas que, se formos a analisar a sua origem profunda, são condicionadas por um número sem fim de fatores, de cuja existência muitas vezes nem nos apercebemos? Será que a livre vontade não passa afinal de uma ilusão? Será que está tudo determinado, apesar de não termos consciência disso?"

Tomás remexeu-se na cadeira.

"Já percebi que essas perguntas trazem água no bico", observou, desconfiado. "Qual é a resposta

da ciência? Somos livres ou não?"

"Essa é a grande dúvida", sorriu o pai, com malícia. "Se não me engano, o primeiro grande defensor do determinismo foi um grego chamado Leucipo. Ele afirmou que nada acontece por acaso e tudo tem uma causa. Platão e Aristóteles, no entanto, pensavam de outra maneira e deixaram espaço aberto à livre vontade, um ponto de vista que a Igreja adoptou. Convinha-lhe, não é? Se o homem tinha livre vontade, Deus ficava desresponsabilizado de todo o mal que ocorria no mundo. Durante séculos prevaleceu assim a ideia de que os seres humanos dispõem de livre vontade. Só com Newton e o avanço da ciência é que o determinismo foi recuperado, ao ponto de um dos mais importantes físicos do século XVIII, o marquês Pierre de Laplace, ter feito uma importante constatação. Ele observou que o universo obedece a leis fundamentais e previu que, se conhecermos essas leis e se soubermos a posição, a velocidade e a direção de cada objeto e de cada partícula existente no universo, seremos capazes de conhecer todo o passado e todo o futuro, uma vez que tudo já se encontra determinado. Chama-se a isso o Demônio de Laplace. Tudo está determinado."

"Hmm", murmurou Tomás. "E o que diz a ciência moderna?"

"Einstein concordava com este ponto de vista e as teorias da Relatividade foram construídas segundo o princípio de que o universo é determinista. Mas a coisa complicou-se quando apareceu a Teoria Quântica, que veio trazer uma visão indeterminista ao mundo dos átomos. A formulação do indeterminismo quântico deve-se a Heisenberg, que, em 1927, constatou que não é possível determinar ao mesmo tempo, e de forma rigorosa, a velocidade e a posição de uma micropartícula. Nasceu assim o Princípio da Incerteza, que veio..."

"Já ouvi falar nisso", cortou Tomás, recordando a explicação que Ariana lhe tinha dado em Teerã. "O comportamento dos grandes objectos é determinista, o comportamento dos pequenos é indeterminista."

Manuel ficou um instante a mirar o filho.

"Caramba", exclamou. "Nunca imaginei que estivesses dentro do assunto."

"Sim, explicaram-me isso há pouco tempo. Não é esse o problema que lançou a busca de uma Teoria de Tudo, capaz de conciliar essas contradições?"

"Exato", confirmou o matemático. "É esse, hoje em dia, o grande sonho da física. Os cientistas estão à procura de uma grande teoria que, entre outras questões, una a Relatividade e a Teoria Quântica e resolva o problema do determinismo ou indeterminismo do universo." Tossiu. "Mas é fundamental notar uma coisa. O Princípio da Incerteza diz que não é possível determinar com exatidão o comportamento de uma partícula devido à presença do observador. Ao longo dos anos, este problema alimentou conversas entre mim e o professor Siza... aquele que desapareceu, sabes?"

"Sim."

"O que se passou foi que o Princípio da Incerteza, que é verdadeiro, provocou o que nós sempre achamos ser um chorrilho de disparates, com alguns físicos a dizerem que uma partícula só decide em que sítio se encontra quando aparece um observador."

"Também já ouvi falar nisso", disse Tomás. "É aquela história de que, se se puser um electrão numa caixa e se separarmos essa caixa em duas partes, o electrão está nas duas ao mesmo tempo e só quando alguém abrir uma das partes é que o electrão decide onde vai ficar..."

"Nem mais", confirmou o pai, impressionado com os conhecimentos que Tomás dispunha sobre física quântica. "Isso foi gozado por Einstein e por outros físicos, claro. Eles recorreram a diversos exemplos para expor o absurdo dessa ideia, o mais famoso dos quais é o do gato de Schrödinger." Tossiu. "Ora bem, Schrõdinger demonstrou que, a ser verdadeira a ideia de que uma partícula está

em dois sítios ao mesmo tempo, também um gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo, o que é um absurdo."

"Sim,", concordou Tomás. "Mas, ó pai, não é essa mecânica quântica que, apesar de ser estranha e contra-intuitiva, bate certo com a matemática e a realidade?"

"Claro que bate certo", exclamou Manuel. "Mas a questão não é saber se bate certo, porque está visto que bate certo. A questão é saber se a interpretação está correcta."

"Como assim? Se bate certo é porque está correta."

O velho matemático sorriu.

"Aí é que entra a sutileza inerente ao universo", disse. "Repara, Heisenberg estabeleceu que não é possível determinar em simultâneo, e de modo exato, a posição e velocidade de uma partícula devido à influência do observador. Foi este enunciado que levou a que se afirmasse que o universo das micropartículas tem um comportamento indeterminista. É que não se consegue determinar o seu comportamento. Mas isso não quer dizer que o comportamento seja indeterminista, percebes?"

Tomás abanou a cabeça, desconcertado.

"Ai que trapalhada! Não percebo nada."

"Ouve, Tomás, toma atenção à sutileza. Heisenberg começou por estabelecer que a posição e velocidade de uma partícula não podem ser determinados em simultâneo e com exactidão devido à presença do observador. Repito, devido à presença do observador. Este é o ponto crucial. O Princípio da Incerteza jamais estabeleceu que o comportamento das micropartículas é indeterminista. O que se passa é que esse comportamento não pode ser determinado, devido à presença do observador e à sua interferência nas partículas observadas. Ou seja, as micropartículas têm um comportamento determinista, mas indeterminável. Entendeste?"

"Hmm..."

"É essa a sutileza." Levantou a mão. "Com uma subtileza adicional. É que o Princípio da Incerteza diz-nos também que jamais poderemos provar que o comportamento da matéria é determinista, uma vez que, quando o tentamos fazer, a interferência da observação impede-nos de obter essa prova."

"Entendi", murmurou Tomás. "Mas, então, por que razão esse debate existiu?"

O pai riu-se.

"Também a mim faço a mesma pergunta", disse. "Eu e o Siza sempre nos mostramos perplexos por ninguém perceber que isto era um problema de semântica, nascido da confusão entre a palavra indeterminista e a palavra indeterminável." Levantou a mão. "Mas o essencial não é isso. O essencial é que, ao negar a possibilidade de algum dia podermos saber todo o futuro e o passado, o Princípio da Incerteza veio expor uma sutileza fundamental do universo. É como se o universo nos dissesse o seguinte: a história encontra-se determinada desde o nascer dos tempos, mas vocês jamais o poderão provar e jamais poderão conhecê-la com exatidão. É esta a sutileza. Através do Princípio da Incerteza, ficamos a saber que, embora esteja tudo determinado, a derradeira realidade é indeterminável. O universo ocultou o seu mistério por detrás desta sutileza."

Tomás releu a frase de Einstein.

"Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", enunciou. "A Natureza esconde o seu segredo devido à sua essência majestosa, nunca por ardil." Ergueu a cabeça. "E esta parte de que Deus não é malicioso nem usa nenhum ardil?"

"É o que te tenho dito sempre", devolveu o pai. "O universo esconde o seu segredo, mas fá-lo devido à sua imensa complexidade."

"Entendi", confirmou Tomás. "No entanto, a indeterminabilidade do comportamento da matéria só se aplica ao universo atômico, não é?"

O matemático fez uma careta.

"Bem, a verdade é que essa subtileza existe a todos os níveis."

"Eu pensei que tinha dito que só havia indeterminabilidade quântica...", admirou-se Tomás.

"Quer dizer, isso é o que se pensava antigamente. Só que houve outras descobertas que foram feitas entretanto."

"Que descobertas?"

Manuel Noronha contemplou a cidade para além da janela, mas fê-lo com um olhar sonhador, como um pássaro fechado numa gaiola observa o céu para além das grades.

"Olha lá, e se fôssemos tomar um café ali à praça?"

A Praça do Comércio espreguiçava-se na modorra aprazível da manhã. O sol fazia resplandecer as fachadas brancas e os varandins metálicos dos velhos edifícios que cercavam o largo, onde apenas sobressaía o amarelo-torrado do frontispício quase rústico da velha igreja românica de São Tiago. Pequenas tendinhas animavam a praça, exibindo roupas alegres, faiança azul da região e simples bijuteria. A esplanada parecia convidativa, pelo que pai e filho instalaram-se numa mesa, estenderam as pernas e viraram o rosto na direção do astro flamejante, abraçando com prazer o calor gostoso que lhes amornava a pele.

O empregado apareceu de bloco de notas na mão e, perante o seu olhar inquiridor, os clientes pediram duas bicas. Quando o rapaz se afastou, Tomás mirou languidamente o pai.

"O pai disse há pouco que a indeterminabilidade não pertencia apenas ao mundo quântico..."

"Sim."

"Mas, ou me engano muito, ou isso contradiz tudo o que foi dito antes. Não era a Teoria da Relatividade e a Física Clássica de Newton que eram deterministas?"

"Eram e são."

"E ambas estabelecem que o comportamento da matéria é previsível..."

"Não exatamente."

"Não percebo. Segundo me disseram noutro dia, se eu souber a posição, a velocidade e a direção da Lua, poderei calcular com exactidão todos os seus movimentos passados e futuros. Não é isso previsibilidade?"

"As coisas não se passam bem assim. Foram feitas descobertas posteriores que mudaram tudo."

"Que descobertas?"

O empregado apareceu e colocou as duas bicas na mesa. Manuel Noronha endireitou-se na cadeira, bebeu um trago tímido e passou os olhos pelo céu, observando os flocos de algodão que deslizavam suavemente sobre o azul límpido.

"Diz-me uma coisa, Tomás. Por que razão não conseguimos prever com rigor o estado do tempo?"

"Hã?"

O matemático apontou para o céu.

"Por que razão o boletim meteorológico na televisão previa para hoje céu limpo sobre Coimbra e eu estou a ver aquelas nuvens a passar, desmentindo a previsão?"

"Sei lá", riu-se Tomás. "Porque os nossos meteorologistas são uns nabos, suponho eu."

O pai voltou a esticar-se no seu lugar, o rosto voltado para o calor do sol.

"Resposta errada", disse. "O problema está na equação."

"Como assim?"

"Em 1961, um meteorologista chamado Edward Lorenz sentou-se diante de um computador e pôs-se a ensaiar previsões meteorológicas sobre o comportamento do clima a longo prazo com base em apenas três variáveis: a temperatura, a pressão do ar e a velocidade do vento. A experiência nada revelaria de especial se não se tivesse dado o caso de ele ter querido examinar uma determinada sequência com mais pormenor. Foi uma coisa pequena, quase insignificante. Em vez de introduzir um certo dado outra vez desde o início, foi ver uma cópia impressa da experiência original e copiou o número que ali viu." Tirou uma caneta do bolso do casaco e pegou num guardanapo de papel, que estendeu sobre a mesa da esplanada. "Era, se bem me lembro, o... uh..." Rabiscou quatro algarismos.

0,506


"Era 0,506."

"Ena, isso é que é memória", comentou o filho.

"Nós, os matemáticos, somos assim." Sorriu e apontou para as chávenas fumegantes sobre a mesa. "Ora bem, tal como nós estamos agora a fazer, Lorenz foi tomar um café e deixou o computador a processar os dados. Quando regressou, no entanto, nem queria acreditar no que tinha à sua espera. Ele descobriu que a nova previsão meteorológica feita pelo computador era totalmente diferente da anterior. Totalmente. Intrigado, foi tentar ver o que mudara." Bateu com a ponta da caneta nos quatro dígitos que gatafunhara no guardanapo de papel. "Depois de analisar tudo, percebeu que, ao introduzir este dado, só tinha reproduzido quatro algarismos de uma sequência mais longa."

Rabiscou a sequência completa.

0,506127

"Era esta a sequência completa original. Confrontado com esta situação, ele tomou consciência de que uma alteração milionesimal dos dados, uma coisa infimamente pequena, quase insignificante, alterava totalmente a previsão. Era como se uma mera lufada de vento imprevista tivesse o poder de mudar o estado do tempo em todo o planeta." Fez uma pausa dramática. "Lorenz descobriu o caos."

"Perdão?"

"A Teoria do Caos constitui um dos mais fascinantes modelos matemáticos existentes e ajuda a explicar muitos comportamentos do universo. A ideia fundamental dos sistemas caóticos é simples de formular. Pequenas alterações nas condições iniciais provocam profundas alterações no resultado final. Ou seja, pequenas causas, grandes efeitos."

"Dê-me um exemplo."

O pai voltou a apontar para o céu e para as nuvens intermitentes que, por vezes, lançavam irritantes sombras sobre a Praça do Comércio.

"O estado do tempo", disse. "O exemplo mais famoso é o chamado Efeito Borboleta. O bater de asas de uma borboleta aqui em Coimbra vai alterar milionesimalmente a pressão do ar em redor de si. Essa pequeníssima alteração irá produzir um efeito dominó nas moléculas de ar, ao ponto de, daqui a algum tempo, provocar uma colossal tempestade na América. É isso o Efeito Borboleta. Agora, transporta o efeito desta pequena borboleta para o efeito de todas as borboletas no mundo, de todos os animais, de tudo o que mexe e respira. O que resulta daqui?" Abriu as mãos, como quem expõe uma evidência. "A imprevisibilidade."

"Que remete para o indeterminismo."

"Não", exclamou o matemático. "A imprevisibilidade não remete para o indeterminismo, mas para a indeterminabilidade. O comportamento da matéria continua a ser determinista. O que se passa é que a matéria organiza-se de tal maneira que não é possível prever o seu comportamento a longo prazo, embora ele já esteja determinado. Se quiseres, poderemos dizer que o comportamento dos sistemas caóticos é causal, mas parece casual."

"Hmm", murmurou Tomás. "Acha que, sendo isso válido para a meteorologia, pode também ser aplicado noutros campos?"

"Tomás, a Teoria do Caos está presente por todo o lado. Todo. Se calhar, no mundo quântico nós não conseguimos prever com toda a certeza o comportamento das micropartículas pela simples razão de que ele é caótico. Esse comportamento já está determinado, mas as flutuações das suas condições iniciais são de tal modo minúsculas que não nos é possível antecipar-lhe a evolução. É por isso que, para efeitos práticos, o mundo quântico nos parece indeterminista. Na verdade, as micropartículas têm um comportamento determinista, mas o fato é que não o conseguimos determinar. Acredito que isso se deve à influência da observação, conforme estabelecido inicialmente pelo Princípio da Incerteza, mas também à indeterminabilidade inerente aos sistemas caóticos."

"Está bem, mas isso só acontece com coisas minúsculas, como os átomos ou as moléculas..."

"Enganas-te", insistiu o pai. "O caos está em toda a parte, incluindo nos grandes objetos. O próprio sistema solar, que parece ter um comportamento previsível, é, na verdade, um sistema caótico. O que se passa é que nós não nos apercebemos disso porque observamos movimentos muito lentos. Mas o sistema solar é caótico. Uma projeção feita por um computador calculou, por exemplo, que se a Terra começasse a orbitar o Sol a apenas cem metros de distância do local onde efetivamente começou, ao fim de cem milhões de anos afastar-se-ia quarenta milhões de quilômetros da rota original. Pequenas causas, grandes efeitos."

"Hmm."

"Até as nossas vidas são geridas pelo caos. Imagina, por exemplo, que te metes no carro e, antes de arrancares, percebes que a aba do teu casaco ficou presa na porta. O que fazes então? Abres a porta, ajeitas a aba, fechas a porta e arrancas. Perdeste cinco segundos nesse processo. Quando chegares à primeira esquina, aparece um camião que te abalroa. Resultado, ficas paraplégico a vida toda. Agora imagina que não prendeste a aba do casaco na porta. O que acontece? Arrancas imediatamente o carro e chegas à esquina cinco segundos antes, não é? Olhas para a direita, vês o caminhão a aproximar-se, esperas que ele passe e depois prossegues a tua viagem. É isto a Teoria do Caos. Por causa da aba do casaco presa na porta do carro, perdeste cinco segundos que te vão fazer a diferença o resto da vida." Fez um gesto resignado. "Pequenas causas, grandes efeitos."

"Tudo por causa de uma coisa tão pequena?"

"Sim. Mas atenção. Já estava determinado que tu irias prender a aba do casaco à porta do carro. É que vestiste mal o casaco de manhã. E vestiste-o mal porque acordaste maldisposto. E acordaste maldisposto porque dormiste pouco. E dormiste pouco porque te deitaste tarde. E deitaste-te tarde porque tinhas um trabalho para fazer para a faculdade. E tinhas esse trabalho para fazer por isto ou por aquilo. Tudo é causa de tudo e provoca consequências que se tornam causas de outras consequências, num eterno efeito dominó, em que tudo está determinado mas permanece indeterminável. O próprio motorista do camião podia ter travado a tempo, mas não o fez porque viu uma rapariga bonita a passar e olhou para o lado. E a rapariga passou ali naquele instante porque se atrasou. E ela atrasou-se por causa de um telefonema do namorado. E o namorado ligou-lhe por isto ou por aquilo. Tudo é causa e consequência."

Tomás passou a mão pelo cabelo, tentando ordenar as idéias.

"Espere aí", disse. "Vamos imaginar que é possível colocar todos os dados do universo num supercomputador. Nesse caso, conseguiríamos prever todo o passado e todo o futuro?"

"Sim, o Demónio de Laplace aplicar-se-ia. Todo o passado e o futuro já existem e se nós soubéssemos todas as leis e conseguíssemos definir com precisão, e em simultâneo, a velocidade, direção e posição de toda a matéria, conseguiríamos ver todo o passado e o futuro."

"Portanto, em teoria isso é possível..."

"Não, em teoria não é possível."

"Desculpe", retificou Tomás. "Em teoria é possível. Na prática é que não é."

O pai abanou a cabeça.

"Essa é mais uma sutileza do universo", disse. "Se nós conseguíssemos saber tudo sobre o estado presente do universo, conseguiríamos determinar o passado e o futuro, uma vez que já está

tudo determinado. Mas mesmo do ponto de vista teórico não é possível saber tudo sobre o estado presente do universo."

"Ah é? E por que não?"

"Por causa de outra sutileza inerente ao universo", respondeu o matemático. "O infinito."

Tomás esboçou uma careta.

"O infinito?"

"Sim. Nunca ouviste falar no Paradoxo de Zenão?"

"Uh... já."

"Descreve-o, se faz favor."

"O que é isto? Um exame?"

"Anda lá! Descreve-o, vá!"

O filho estreitou os olhos e fez um esforço de memória.

"Bem... uh... se bem me lembro, é aquela história da corrida entre uma tartaruga e uma lebre, não é? A tartaruga arranca primeiro, mas a lebre, que é muito mais rápida, depressa a ultrapassa. O problema é que, segundo Zenão, a lebre nunca poderá apanhar a tartaruga porque o espaço que as divide é infinitamente divisível. É isso, não é?"

"Sim", confirmou o pai. "O Paradoxo de Zenão ilustra o problema matemático do infinito. Para correr um metro, a lebre tem de correr metade dessa distância. E essa metade também é divisível por outra metade, e a outra metade por outra metade, e assim infinitamente."

"Mas o que quer o pai provar com isso?"

"O que quero provar é que o infinito é um problema inultrapassável para a questão da previsibilidade." Fez mais uma vez um gesto na direcção do céu. "Voltemos ao exemplo do estado do tempo. A previsão a longo prazo é impossibilitada por duas ordens de fatores. Uma é iminentemente prática. Mesmo que eu saiba quais são todos os factores que influem no estado do tempo, eu teria de os considerar a todos. A respiração de cada animal, o movimento de qualquer ser vivo, a actividade solar, uma erupção vulcânica, o fumo exalado por cada automóvel, cada chaminé, cada fábrica, tudo. Ora, eu tenho uma impossibilidade prática de levar em linha de conta todos estes fatores em simultâneo, não é?"

"Claro, isso não é possível."

"Mas a segunda ordem de factores está relacionada com o problema do infinito. Por exemplo, vamos imaginar que eu teria de medir a temperatura global num dado momento para poder fazer extrapolações. Suponhamos que, aqui em Coimbra, eu colocava o termómetro e media ao meio-dia... uh... sei lá, dá-me um valor."

"Vinte graus?"

O pai voltou a tirar a caneta do casaco e rabiscou uns algarismos no mesmo guardanapo de papel onde já escrevinhara o valor que levara Lorenz a descobrir os sistemas caóticos.

20º

"Muito bem, 20 graus", disse o matemático. "Mas a verdade é que esta medição está incompleta, não está? Eu só medi as unidades. Ora, nós sabemos que as pequenas alterações nas condições iniciais conduzem a grandes alterações nas condições finais. Se assim é, saber qual a medição decimal, centesimal e milesimal é fundamental, não achas?"

"Bem, então acrescente lá."

Manuel juntou três algarismos.

20,793º

"Mas... e os valores seguintes? Não poderão também ser importantes? A Teoria do Caos diz que sim. Portanto, temos de pôr os valores seguintes, por muito minúsculos que sejam, uma vez que qualquer pequena alteração pode produzir efeitos gigantescos."

"Hmm."

O matemático acrescentou mais algarismos.

20,793679274027934288722º

"Mas mesmo isto não chega", afirmou. "É que o algarismo seguinte a todos estes também pode ser crucial." Sorriu. "O que eu quero dizer é que a medição teria de levar um número infinito de algarismos. Ora, isso não é possível, pois não? Portanto, por mais algarismos que ponhamos, nunca poderemos saber com exatidão a temperatura num determinado lugar e hora, uma vez que teríamos de fazer uma conta que envolvesse dados infinitesimais."

"Ah, entendi."

"Mas o problema é ainda mais complexo do que isto." Bateu na mesa. "É que a temperatura que se verifica aqui nesta mesa pode ser ligeiramente diferente da temperatura existente ali, a apenas um metro de distância." Apontou para o lado. "Logo, teríamos de medir todos os espaços de Coimbra. Mas isso não é possível, pois não? Tal como no Paradoxo de Zenão, é fácil constatar que cada metro é infinitamente divisível. Eu teria de medir a temperatura em todos os espaços existentes para poder saber quais as condições iniciais. Mas como a distância entre cada espaço, por mais pequena que seja, é sempre divisível pela metade, eu nunca conseguiria medir todo o espaço. E o mesmo se aplica no tempo. A diferença entre um segundo e outro é infinitamente divisível, não é? Ora, entre um instante e o outro pode haver sutis variações de temperatura que têm de ser medidas. Mas como a divisão entre o tempo é igualmente infinita, segundo o princípio enunciado pelo Paradoxo de Zenão, eu nunca conseguirei obter essa medição. Lembra-te, o raciocínio por detrás do Paradoxo de Zenão mostra-nos que existe tanto espaço num metro como no universo inteiro, existe tanto tempo num segundo como em toda a eternidade, e esta é uma propriedade misteriosa do universo."

"Estou a ver..."

Manuel pegou na chávena e engoliu todo o café que restava. Respirou fundo, distendeu-se na cadeira e fechou os olhos, gozando o calor prazenteiro irradiado pelo sol.

"Lembras-te de, no outro dia, eu te ter falado nos teoremas da Incompletude, de Gödel?"

"Sim."

"Vamos lá a ver se memorizaste a coisa", disse. "Em que consistem esses teoremas?"

Tomás sacudiu a cabeça, com enfado.

"Eh pá! Sei lá..."

O pai abriu um olho e fitou Tomás.

"Não te lembras?"

"Eu não!"

"Então não te lembras de eu dizer que os teoremas da Incompletude mostram que um sistema matemático não consegue provar todas as suas afirmações?"

"Ah, sim."

"Essa demonstração foi de grande importância, percebes?"

"Mas porquê? O que tem isso assim de tão extraordinário?"

"É muito simples", disse Manuel. "Os teoremas da Incompletude desvendaram uma nova característica misteriosa do universo. Através desses dois teoremas, o que o universo nos diz é o seguinte: há certas coisas que vocês, seres humanos, sabem que são verdadeiras, mas jamais poderão prová-lo devido à forma majestosa como eu, o universo, ocultei o último resto da verdade.

Vocês poderão conhecer grande parte da verdade, mas as coisas estão concebidas de tal modo que jamais conseguirão apreendê-la na íntegra. Entendes agora?"

"Sim."

O matemático abriu as mãos, no seu gesto característico sempre que acabava de provar algo.

"Voilà", exclamou. "O Princípio da Incerteza, os sistemas caóticos e os teoremas da Incompletude têm um significado profundo, ao revelarem-nos subtilezas incríveis do funcionamento do universo." Abarcou o céu com um gesto. "Todo o cosmos está assente na matemática. As leis fundamentais do universo expressam-se em equações e fórmulas matemáticas, as leis da física são algoritmos para o processamento de informação e o segredo do universo encontra-se codificado em linguagem matemática. Tudo está ligado a tudo, até o que não parece ter ligação. Mas mesmo a linguagem matemática não consegue descodificar totalmente esse código. É essa a propriedade mais enigmática do universo: a forma como ele oculta a verdade final. Está tudo determinado, mas tudo é indeterminável. A matemática é a linguagem do universo, mas não temos maneira de o provar para além de qualquer dúvida. Quando vamos ao fundo das coisas, encontramos sempre um estranho véu que oculta as derradeiras facetas do enigma. O criador esconde aí a sua assinatura. As coisas estão concebidas com tal sutileza que não é possível desvendar por completo o seu segredo mais profundo."

"Hmm."

"Haverá sempre mistério no fundo do universo."



Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.