quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Alfa e o Ômega

Fique atento: O português desse texto está escrito na forma de português de Portugal.

"Como esta é a primeira aula de Astrofísica neste semestre, pensei que, se calhar, era melhor fazer um apanhado geral sobre o essencial de dois pontos cruciais da matéria... uh... o... o Alfa e o Ômega. As equações e os cálculos ficarão para mais tarde. Parece-vos bem?"

Os estudantes responderam com um silêncio expectante. Apenas duas raparigas da fila da frente, preocupadas em não deixar o professor sem resposta, acenaram afirmativamente com a cabeça, encorajando-o a prosseguir.

"Bem... quem é que me sabe dizer o que são os pontos Alfa e Ômega?"

Luís Rocha era, além de inexperiente a dar aulas, teimoso, constatou Tomás. A turma mostrava-se passiva, talvez por respeito para com a figura ausente de Augusto Siza, talvez porque pressentia a inexperiência de Luís Rocha e queria testá-la até ao limite, mas a verdade é que o professor insistia em interpelar os alunos. Embora fosse a atitude pedagógica mais correcta, tal postura constituía sem dúvida, naquele contexto, um risco desnecessário.

Fosse como fosse, apenas o silêncio respondeu ao docente.

"Então?"

Mais silêncio.

A aula começava mal e tornava-se um tudo-nada confrangedora, mas Luís Rocha não baixou os braços e apontou para um aluno de barbas.

"O que é o ponto Alfa?"

O estudante estremeceu; até aí apreciara tranquilamente o espetáculo e não estava à espera de ser interpelado.

"Bem... uh... acho que... acho que é a primeira letra do alfabeto grego", exclamou, enchendo o peito de satisfação e sorrindo com a sua tirada.

"Como é que você se chama?"

"Nelson Carneiro."

"Nelson, esta não é uma cadeira de Línguas nem de História. Depois dessa resposta, eu diria que você está à beira de ser chumbado."

Nelson corou, mas o professor ignorou o rubor e virou-se para toda a classe.

"Ouçam bem", disse. "Comigo é premiado o aluno que colaborar na aula e se mostrar interventivo. Eu quero cabeças pensantes, mentes activas e inquisitivas, não quero esponjas passivas, entenderam?" Apontou de imediato para um aluno do outro lado, rapaz bem nutrido. "Em Astrofísica, o que é o ponto Alfa?"

"É o início do universo, professor", devolveu o gordinho muito depressa, escaldado com o que se passara momentos antes com Nelson.

"E o ponto Ômega?"

"É o fim do universo, professor."

Luís Rocha esfregou as mãos e Tomás, olhando-o do fundo do anfiteatro, não pôde deixar de pensar que se enganara; afinal, o professor não era inexperiente. Com umas frases apenas, ao ameaçar um aluno de reprovação e encorajando os outros a serem mais interventivos, pusera toda a turma em sentido.

"O Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o nascimento e a morte do universo", enunciou. "Eis os temas da nossa conversa de hoje." Deu dois passos para o lado. "Pergunto-vos eu: por que razão o universo tem de ter um princípio e um fim? Qual o problema de o universo ser eterno? Poderá ele ser eterno?"

A turma manteve-se em silêncio, ainda a digerir os novos métodos.

"Você aí, qual a resposta?"

Apontou para uma aluna de óculos, que logo ficou muito corada ao ver-se interpelada.

"Bem, professor... uh... eu não... não sei."

"Não sabe você, nem sabe ninguém", rematou o professor. "Mas essa é uma hipótese a considerar, não é? Um universo de duração infinita, sem princípio nem fim, um universo que sempre existiu e sempre existirá. Agora pergunto-vos, como é que vocês acham que a Igreja reage a este conceito?"

Os alunos fizeram um ar incrédulo, alguns pareciam mesmo duvidar que tinham escutado o que o professor perguntara.

"A Igreja?", admirou-se um deles. "O que tem a Igreja a ver com isto, professor?"

"Tudo e nada", retorquiu Luís Rocha. "A questão do princípio e do fim do universo não é uma questão exclusivamente científica, é um problema também teológico. Sendo uma questão essencial, ela bordeja já as fronteiras da física, ao ponto de quase entrar, ou entrar mesmo, na metafísica. Houve ou não houve Criação?" Deixou a pergunta pairar um instante no anfiteatro. "Baseada no que está escrito na Bíblia, a Igreja sempre preconizou um princípio e um fim, um Gênesis e um Apocalipse, um Alfa e um Omega. Mas a ciência começou, a certa altura, a aparecer com uma resposta diferente. Na sequência das descobertas de Copérnico, Galileu e Newton, os cientistas passaram a achar que a hipótese de um universo eterno era a mais provável. É que, por um lado, o problema da Criação remete para o problema do Criador, pelo que, eliminando-se a Criação, elimina-se a necessidade de um criador. Por outro, a observação do universo parece indiciar um mecanismo constante e estável, mais consonante com a ideia de que esse mecanismo sempre existiu e sempre existirá. Portanto, o problema está resolvido, não acham?" Aguardou um momento, à espera de resposta, mas como ninguém interveio o professor voltou para a secretária, pegou nos apontamentos e dirigiu-se para a saída. "Bem, uma vez que vocês acham que a questão está encerrada, não há motivo para continuarmos a aula, pois não? Se o universo é eterno, não há os problemas do Alfa e do Ômega. Como esta aula era dedicada a esses dois problemas, e eles já estão resolvidos, só me resta despedir-me, não é?" Acenou. "Então até para a semana."

Os alunos olharam-no, embasbacados.

"Adeus", repetiu o professor.



"Mas o professor já se vai embora?", quis saber uma estudante, desconcertada.

"Sim", retorquiu ele, ainda pregado à porta. "Pois vocês parecem satisfeitos com a resposta do universo eterno..."

"E é possível demonstrar o contrário?"

"Ah!", exclamou Luís Rocha, como se finalmente tivesse ouvido um argumento válido para continuar a aula. "Ora aí está uma possibilidade interessante." Deu meia-volta e regressou à secretária, despejando aí os apontamentos de novo. "Afinal a aula não acabou. Há ainda um pequeno pormenor a resolver. Será possível demonstrar que o universo não é eterno? Na verdade, esta pergunta remete para um problema crucial: o fato de as observações contradizerem a teoria." Esfregou as mãos. "Alguém aqui sabe que contradições são essas?"

Ninguém sabia.

"Bom, a primeira contradição surge na Bíblia, embora isso não tenha grande relevância no quadro da física, claro. Mas é uma curiosidade que tem graça explorar. Segundo relata o Antigo Testamento, Deus criou o universo numa explosão primordial de luz. Embora esta permanecesse a explicação padrão para as religiões judaica, cristã e muçulmana, a verdade é que ela veio a ser questionada fortemente pela ciência. Afinal de contas, a Bíblia não é um texto científico, pois não? A tese do universo eterno tornou-se assim, como vos disse, a explicação mais aceite, pelos motivos que já vos indiquei." Fez um gesto dramático com a mão. "Porém, no século XIX foi feita uma descoberta de grande importância, uma das maiores descobertas jamais efetuadas pela ciência, uma revelação que veio pôr em causa a ideia do universo com idade infinita." Passou os olhos pela turma. "Alguém sabe que descoberta foi essa?"

Todos permaneceram calados.

O professor pegou num marcador negro e rabiscou uma equação no quadro.

"Quem sabe o que é isto?"

Os alunos fixaram os olhos no quadro.

"Isso não é a segunda lei da termodinâmica?", perguntou um deles, um rapaz magro de óculos e despenteado, habitualmente dos mais brilhantes alunos do curso.

"Nem mais", exclamou Luís Rocha. "A segunda lei da termodinâmica." Apontou para cada um dos elementos da equação rabiscada no quadro. "O triângulo significa variação, o S quer dizer entropia, o > representa, como vocês sabem, o conceito de maior, e o 0 é o zero. Ou seja, o que esta equação nos vem dizer é que a variação da entropia do universo é sempre maior do que zero." Bateu no quadro com a ponta do marcador. "A segunda lei da termodinâmica." Apontou para o aluno que falara anteriormente. "Quem a formulou?"



"Clausius, professor. Em 1861, creio eu."

"Rudolf Julius Emmanuel Clausius", entoou o professor, claramente embalado na matéria. "Clausius já tinha formulado a lei da conservação da energia, afirmando que a energia do universo é uma eterna constante, nunca pode ser criada nem destruída, apenas transformada. Depois decidiu propor o conceito de entropia, que abarca todas as formas de energia e a temperatura, acreditando que ela também seria uma eterna constante. Se o universo era eterno, a energia teria de ser eterna e a entropia também. Mas quando começou a fazer medições, descobriu, chocado, que as fugas de calor de uma máquina excediam sempre a transformação do calor em trabalho, provocando ineficiências. Recusando-se a aceitar esse resultado, pôs-se a medir também a natureza, incluindo o ser humano, e concluiu que o fenómeno persistia em toda a parte. Depois de muito tentar, teve de se render à evidência. A entropia não era uma constante, antes estava sempre a aumentar. Sempre. Nasceu assim a segunda lei da termodinâmica. Clausius detectou a existência desta lei no comportamento térmico, mas o conceito de entropia rapidamente se generalizou a todos os fenômenos naturais. Percebeu-se que a entropia existia em todo o universo." Fitou os alunos. "Qual é a consequência desta descoberta?"

"As coisas envelhecem", disse o estudante de óculos.



"As coisas envelhecem", confirmou o professor. "A segunda lei da termodinâmica veio provar três coisas." Ergueu três dedos. "A primeira é que, se as coisas envelhecem, então haverá um ponto no tempo em que vão morrer. Isso acontecerá quando a entropia atingir o seu ponto máximo, no momento em que a temperatura se espalhar uniformemente pelo universo." Dois dedos. "A segunda é que existe uma flecha do tempo. Ou seja, o universo pode estar determinado e toda a sua história já existir, mas a sua evolução é sempre do passado para o futuro. Esta lei implica que tudo evolui com o tempo." Um dedo. "A terceira coisa que a segunda lei da termodinâmica veio provar é que, se está tudo a envelhecer, é porque houve um momento em que tudo era novo. Mais ainda, houve um momento em que a entropia era mínima. O momento do nascimento." Fez uma pausa dramática. "Clausius mostrou que houve um nascimento do universo."

"O professor está a dizer que já no século XIX se sabia que o universo não era eterno?"

"Sim. Quando a segunda lei da termodinâmica foi formulada e demonstrada, os cientistas logo perceberam que a ideia de um universo eterno era incompatível com a existência de processos físicos irreversíveis. O universo está a evoluir para um estado de equilíbrio termodinâmico, em que deixa de haver zonas frias e zonas quentes, antes uma temperatura constante em toda a parte, o que implica entropia total, ou máxima desordem. Ou seja, o universo parte de total ordem para acabar em total desordem. E esta descoberta foi acompanhada pelo aparecimento de outros indícios. Alguém conhece o Paradoxo de Olbers?"

Ninguém conhecia.

"O Paradoxo de Olbers está relacionado com a escuridão do céu. Se o universo é infinito e eterno, então não pode haver escuridão à noite, uma vez que o céu estaria obrigatoriamente inundado de luz proveniente de um número infinito de estrelas, não é? Mas a escuridão existe, o que é um paradoxo. Este paradoxo só se resolve se se atribuir uma idade ao universo, dado que assim se pode postular que a Terra só recebe a luz que teve tempo de viajar até ela desde o nascimento do universo. Essa é a única explicação para o facto de existir escuridão à noite."

"Portanto, houve mesmo um ponto Alfa, não é?", perguntou um aluno.

"Exato. Mas havia ainda um outro problema para resolver, relacionado com a gravidade. Os cientistas presumiam que o universo, sendo eterno, era também estático, e foi nesse pressuposto que assentou toda a física de Newton. O próprio Newton, porém, apercebeu-se de que a sua lei da gravidade, que estabelece que toda a matéria atrai matéria, tinha como consequência última que todo o universo estaria amalgamado numa grande massa. A matéria atrai a matéria. E, no entanto, olhando para o céu, percebe-se que não é isso o que se passa, pois não? A matéria está distribuída. Como explicar este fenômeno?"

"Não foi Newton que recorreu ao infinito?"

"Sim, Newton disse que era o fato de o universo ser infinito que impedia que a matéria se amalgamasse toda. Mas a verdadeira resposta foi dada por Hubble."

"O telescópio ou o astrônomo?"

"O astrônomo, claro. Na década de 1920, Edwin Hubble confirmou a existência de galáxias para além da Via Láctea, e, quando se pôs a medir o espectro da luz que elas emitiam, percebeu que se estavam todas a afastar de nós. Mais ainda, ele verificou que quanto mais longe se encontrava uma galáxia, mais depressa ela se afastava. Foi assim que se percebeu a verdadeira razão pela qual, em obediência à lei da gravidade, toda a matéria do universo não estava amalgamada numa única e enorme massa. É que o universo está em expansão." O professor estacou no centro do estrado, mirando a classe. "Pergunto-vos eu: qual a relevância desta descoberta para o problema do ponto Alfa?"

"É simples", disse o estudante de óculos, agitando-se no seu lugar. "Se toda a matéria do universo se está a afastar uma da outra, é porque no passado esteve junta."

"Nem mais. A descoberta do universo em expansão implica que houve um momento inicial em que tudo se encontrava junto e foi projetado em todas as direções. Aliás, os cientistas perceberam que isso batia certo com a Teoria da Relatividade Geral, que permitia o conceito de um universo dinâmico. Ora, com base em todas estas descobertas, houve um padre belga, chamado Georges Lemaitre, que, na década de 1920, propôs uma nova idéia."

Voltou-se para o quadro e rabiscou duas palavras inglesas.

Big Bang

"O Big Bang. A grande explosão." Voltou a encarar os alunos. "Lemaítre sugeriu que o universo nasceu de uma brutal explosão inicial. A ideia era extraordinária e resolvia de uma assentada todos os problemas existentes com o conceito de um universo eterno e estático. O Big Bang estava em consonância com a segunda lei da termodinâmica, solucionava o Paradoxo de Olbers, explicava a atual configuração do universo perante as exigências da lei da gravidade de Newton e batia certo com as teorias da Relatividade de Einstein. O universo começou com uma grande explosão súbita... embora talvez a expressão mais adequada não seja explosão, mas expansão."

"E antes dessa... uh... expansão o que havia, professor?", perguntou uma aluna de aspecto prendado. "Apenas o vácuo?"

"Não houve antes. O universo começou com o Big Bang."

A estudante fez um ar atrapalhado.

"Sim, mas... uh... o que havia antes da expansão? Tinha de haver alguma coisa, não?"

"É isso o que eu lhe estou a dizer", insistiu Luís Rocha. "Não houve antes. Não estamos a falar aqui de um espaço que existia vazio e que começou a ser preenchido. O Big Bang implica que não havia espaço sequer. O espaço nasceu com a grande expansão súbita, está a entender? Ora, as teorias da Relatividade estabelecem que espaço e tempo são duas faces da mesma moeda, não é? Assim sendo, a conclusão é lógica. Se o espaço nasceu com o Big Bang, o tempo também nasceu com esse acontecimento primordial. Não havia antes porque não existia o tempo. O tempo começou com o espaço, que começou com o Big Bang. Perguntar o que havia antes de haver o tempo é o mesmo que perguntar o que existe a norte do pólo Norte. Não faz sentido, entendeu?"

A aluna abriu muito os olhos e assentiu com a cabeça, mas era evidente que a ideia lhe parecia bizarra.

"Este problema do momento inicial é, aliás, o mais complexo de toda a teoria", salientou o professor, percebendo a estranheza do que tentava explicar. "Chamam-lhe uma singularidade. Pensa-se que todo o universo se encontrava comprimido num ponto infinitamente pequeno de energia e que, de repente, houve uma erupção, na qual se criou a matéria, o espaço, o tempo e as leis do universo."

"Mas o que provocou essa erupção?", perguntou o aluno de óculos, muito atento aos pormenores.

O rosto de Luís Rocha contraiu-se num novo tique nervoso. Este era o ponto mais delicado de toda a teoria, aquele em que havia mais dificuldades em explicar as coisas; não só porque as explicações eram contra-intuitivas, mas também porque os próprios cientistas se mostram ainda perplexos perante este problema.

"Bem, este é o ponto onde o mecanismo causal não se aplica", argumentou.

"Não se aplica, como?", insistiu o aluno. "O professor está a insinuar que não houve causa?"

"Mais ou menos. Reparem, eu sei que tudo isto parece esquisito, mas é importante que sigam o meu raciocínio. Todos os acontecimentos têm causas e os seus efeitos tornam-se causas dos acontecimentos seguintes. Certo?" Algumas cabeças assentiram, essa era uma evidência da física. "Ora bem, o processo causa-efeito-causa implica uma cronologia, não é? Primeiro vem a causa, depois produz-se o efeito." Ergueu a mão, tentando enfatizar o que ia dizer a seguir. "Agora reparem: se o tempo ainda não existia naquele ponto infinitamente pequeno, como podia um acontecimento gerar outro? Não havia antes nem depois. Logo, não havia causas nem efeitos, porque nenhum acontecimento podia preceder o outro."

"O professor não acha que essa é uma explicação um pouco insatisfatória?", perguntou o aluno de óculos.

"Eu não acho, nem deixo de achar. Estou apenas a tentar explicar-vos o Big Bang com os dados que temos hoje. A verdade é que, tirando o problema da singularidade inicial, esta teoria resolve de fato os paradoxos suscitados pela hipótese do universo eterno. Mas houve cientistas que, tal como alguns de vós, se sentiram insatisfeitos com o Big Bang e procuraram uma explicação alternativa. A hipótese mais interessante que apareceu foi a da teoria do universo em estado permanente, baseada na idéia de que a matéria de baixa entropia está constantemente a ser criada. Em vez de a matéria surgir toda numa grande expansão inicial, ela vai aparecendo gradualmente, em pequenas erupções ao longo do tempo, compensando a parte da matéria que morre ao atingir a máxima entropia. Assim sendo, o universo pode ser eterno. Esta possibilidade foi encarada seriamente pela ciência, ao ponto de, durante muito tempo, a teoria do universo em estado permanente ter sido sempre apresentada em pé de igualdade com a teoria do Big Bang."

"E por que motivo já não estão as duas em pé de igualdade?"

"Por causa de uma previsão da teoria do Big Bang. A haver uma grande expansão inicial, os cientistas perceberam que teria de existir uma radiação cósmica de fundo, uma espécie de eco dessa erupção primordial do universo. A existência desse eco foi prevista em 1948 e preconizava que teria uma temperatura por volta dos cinco graus Kelvin, ou seja, cinco graus acima do zero absoluto. Mas onde diabo estava o eco?" Encolheu o pescoço, arregalou os olhos e abriu os braços, numa expressão interrogativa. "Por mais que se procurasse, nada se encontrava. Até que, em 1965, dois astrofísicos americanos estavam a levar a cabo trabalho experimental numa grande antena de

comunicações de New Jersey quando depararam com um irritante barulho de fundo, uma espécie de assobio provocado por vapor. O barulho era enervante e parecia vir de toda a parte do céu. Por mais que virassem a antena para um lado ou para outro, na direção de uma estrela ou de uma galáxia, de um espaço vazio ou de uma nebulosa distante, o som persistia. Andaram um ano a tentar eliminá-lo. Verificaram cabos elétricos, procuraram uma qualquer fonte que estivesse na origem da avaria, fizeram tudo, mas não havia meio de localizarem o problema que provocava aquele ruído insuportável. Em desespero de causa, decidiram ligar aos cientistas da Universidade de Princeton, a quem relataram o que estava a acontecer e pediram uma explicação. E a explicação veio. Era o eco do Big Bang."

"Como assim, o eco?", admirou-se o estudante de óculos. "Que eu saiba, no espaço não há som..."

"O eco é uma força de expressão, claro. O que eles estavam a captar era a luz mais antiga que chegou até nós, uma luz que o tempo tinha transformado em microondas. Chama-se a isso radiação cósmica de fundo e as medições térmicas revelaram que ela se encontra nos três graus Kelvin, muito próximo da previsão feita em 1948." Fez um gesto rápido com a mão. "Oiçam, nunca vos aconteceu ligarem um televisor numa frequência em que não há emissão? O que vêem vocês? Hã?"

"Estática, professor."

"Barulho. Vemos aqueles pontinhos todos a pulularem no ecrã e um ruído enervante, assim crrrrrrrrrrrr, não é? Pois ficam a saber que um por cento desse efeito é proveniente deste eco." Sorriu. "Portanto, se um dia estiverem a ver televisão e nada vos interessar, sugiro-vos que

sintonizem um canal sem programação e fiquem a ver o nascimento do universo. Não há melhor reality show que esse."

"E essa erupção inicial, professor, é possível demonstrá-la matematicamente ?"

"Sim. Aliás, Penrose e Hawking provaram uma série de teoremas que mostraram que o Big Bang é inevitável, desde que a gravidade consiga ser uma força de atração nas condições extremas em que se formou o universo." Fez sinal na direcção do quadro. "Numa das próximas aulas vamos ver esses teoremas."

"Mas, ó professor, explique lá um pouco melhor o que aconteceu logo a seguir ao Big Bang. Formaram-se as estrelas, é?"

"Tudo aconteceu algures entre há dez e vinte mil milhões de anos, provavelmente há quinze mil milhões de anos. A energia estava concentrada num ponto e expandiu-se numa monumental erupção."

Voltou-se para o quadro e escreveu a famosa equação de Einstein.

E = mc2

"Como, segundo esta equação, a energia equivale a massa, o que se passou foi que a matéria emergiu da transformação da energia. No primeiro instante apareceu o espaço e logo se expandiu. Ora, como o espaço está ligado ao tempo, o aparecimento do espaço implicou automaticamente o aparecimento do tempo, que também se expandiu. Nesse primeiro instante nasceu uma superforça e apareceram todas as leis. A temperatura era imensa, umas dezenas de milhares de milhões de graus. A superforça começou a separar-se em forças diferentes. Iniciaram-se as primeiras reações nucleares, que criaram os núcleos dos elementos mais leves, como o hidrogênio e o hélio, e ainda vestígios de lítio. Em três minutos foi produzida noventa e oito por cento da matéria que existe ou alguma vez existirá."

"Os átomos que fazem parte do nosso corpo remontam a esse momento?"

"Sim. Noventa e oito por cento da matéria que existe foi formada a partir da erupção de energia do Big Bang. Isso significa que quase todos os átomos que se encontram no nosso corpo já passaram por diversas estrelas e já ocuparam milhares de organismos diferentes até chegarem a nós. E temos tantos e tantos átomos que se calcula que cada um de nós possui pelo menos um milhão que já pertenceu a qualquer pessoa que viveu há muito tempo." Ergueu o sobrolho. "Isto significa, meus caros, que cada um de nós tem muitos átomos que já estiveram nos corpos de Abraão, Moisés, Jesus Cristo, Buda ou Maomé."

Fez-se um burburinho na sala.

"Mas regressemos então ao Big Bang", disse Luís Rocha, fazendo sobrepor a sua voz à do rumor espantado que se ergueu pela turma. "Depois da erupção inicial, o universo começou a organizar-se automaticamente em estruturas, obedecendo às leis criadas nos primeiros instantes. Com o tempo, as temperaturas baixaram até atingirem um ponto crítico em que a superforça se desintegrou em quatro forças: primeiro a força da gravidade, depois a força forte, finalmente separaram-se a força electromagnética e a força fraca. A força da gravidade organizou a matéria em grupos localizados. Ao fim de duzentos milhões de anos, acenderam-se as primeiras estrelas. Nasceram os sistemas planetários, as galáxias e os grupos de galáxias. Os planetas eram inicialmente pequenos corpos incandescentes que orbitavam as estrelas, como se fossem estrelas pequenas. Esses corpos arrefeceram ao ponto de solidificarem, como aconteceu com a Terra." Abriu os braços e sorriu. "E aqui estamos nós."

"O professor disse há pouco que os planetas pareciam pequenas estrelas que acabaram por solidificar. Isso quer dizer que o Sol também vai solidificar?"

Luís Rocha esboçou uma careta.

"Eh pá! Não me estraguem a manhã a pensar nisso!"

A turma riu-se.

"Mas isso vai acontecer?", insistiu a aluna.

"É sempre simpático falar no nascimento, já viram? Quem não gosta de ver crianças a nascer?" Sacudiu a mão. "Mas, agora, falar na morte... hmm, isso é outra coisa. E, no entanto, a resposta à sua pergunta é afirmativa. Sim, o Sol vai morrer. Aliás, primeiro vai morrer a Terra, depois morrerá o Sol, depois morrerá a galáxia, por último morrerá o universo. É essa a consequência inevitável da segunda lei da termodinâmica. O universo caminha para a entropia total." Fez um gesto teatral. "Tudo o que nasce, morre. O que nos remete directamente do ponto Alfa para o ponto Ômega."

"O fim do universo."

"Sim, o fim do universo." O professor esticou dois dedos e exibiu-os à turma. "Tudo indica que existem duas possibilidades diante de nós."

Voltou-se para o quadro e rabiscou uma frase em inglês.

1. Big Freeze


"A primeira é o chamado Big Freeze, ou grande gelo. Trata-se da consequência última da segunda lei da termodinâmica e da expansão eterna do universo. Com o aumento da entropia, as luzes vão-se apagando gradualmente até haver uma temperatura uniforme em todo o lado, transformando o universo num imenso e gelado cemitério galáctico."

"Isso não é já amanhã, pois não?", gracejou um estudante.

Risos na classe.

"Calcula-se que será daqui a uns cem mil milhões de anos, no mínimo." Fez uma careta com o seu tique nervoso. "Eu sei que é um valor tão grande que não vos diz nada, por isso é melhor eu apresentar as coisas de uma maneira mais compreensível. Imaginem que o universo é um homem que morrerá aos cento e vinte anos. Então, o que vos posso dizer é que o Sol apareceu aos dez anos de vida e nós estamos nos quinze anos de vida. Isto significa que ainda existem cento e cinco anos de vida pela frente. Não é mau, pois não?"

A turma assentiu e Luís Rocha voltou-se de novo para o quadro.

"Bem, vamos agora à segunda possibilidade do ponto Ômega."

Escreveu com o marcador negro mais uma frase na superfície lisa do quadro.


2. Big Crunch


"A segunda possibilidade é a do Big Crunch, ou o grande esmagamento", anunciou, encarando novamente a turma. "A expansão do universo abranda e chegará a um momento em que irá parar, começando depois a encolher." Fez um movimento largo com as mãos, como se tivesse entre elas um balão gigante a crescer, a parar e a encolher. "Devido à força da gravidade, o espaço, o tempo e a matéria começarão a convergir entre si até se esmagarem num ponto infinito de energia." As palmas das mãos juntaram-se. " O Big Crunch é, se quiserem, o Big Bang ao contrário."

"Como um balão que incha e desincha?"

"Exato. No entanto, a contração não se deve a um desinchar, antes aos efeitos da gravidade." Luís Rocha pôs a mão no bolso e tirou uma moeda. "Como esta moeda, estão a ver?" Atirou a moeda ao ar, a moeda subiu um metro nas alturas e caiu de novo na sua mão. "Viram? A moeda subiu, parou a ascensão e desceu, voltando ao ponto inicial. Primeiro venceu a gravidade, depois foi vencida pela gravidade."

Um outro aluno ergueu o dedo e o professor fez-lhe sinal com a cabeça para falar.

"Professor, qual dessas duas possibilidades de morte do universo é a mais forte?"

Luís Rocha bateu com o marcador no primeiro ponto.

"Os astrofísicos inclinam-se para o Big Freeze."

"Porquê?"

"Por dois motivos, ambos resultantes das observações astronômicas. Em primeiro lugar, porque o Big Crunch requer que haja muito mais matéria no universo do que a que nós vemos. A matéria encontrada é insuficiente para, através da gravidade, provocar a contracção do universo. Para resolver este problema, avançou-se com a hipótese de existir matéria negra, ou seja, uma matéria que permanece invisível aos nossos olhos, devido à sua fraca interação. Essa matéria negra constituiria noventa por cento ou mais da matéria existente no universo. O problema é que é difícil encontrar a tal matéria negra. Além disso, se ela existir, será que se encontra disponível em quantidade suficiente para travar a expansão?" Encolheu os ombros. "Em segundo lugar, o Big Freeze parece mais provável por causa de novas observações justamente sobre a expansão do universo. Em 1998 descobriu-se que a velocidade a que as galáxias se afastam está a aumentar. Repito, está a aumentar. Isso acontece provavelmente devido a uma nova força que até aqui se desconhecia, a que se designou força escura, já prevista por Einstein e que combate a força de gravidade. Ora, o Big Crunch requer que a velocidade de expansão diminua até parar e começar a contracção, não é? Mas se a velocidade de expansão está a aumentar, a conclusão que se tira só pode ser uma." Passou os olhos pela turma. "Alguém me sabe dizer qual é essa conclusão?"

O aluno de óculos ergueu o dedo.

"O universo caminha para o Big Freeze."

O professor abriu as mãos e sorriu.

"Bingo!"


Texto extraído do livro "A fórmula de Deus", escrito por José Rodrigues dos Santos, editora Record, 2008.