terça-feira, 3 de setembro de 2013

A ameaça chinesa que originou uma marca em 1970...

FÁBRICAS FECHANDO, empresas pedindo concordata, milhares de trabalhadores perdendo seus empregos, produtos baratos chineses invadindo o mercado, crise para todo lado.

Parece a situação atual no mundo, não é mesmo? Mas acredite: estou falando da Suíça nos anos 1970 – uma prova de que os problemas se repetem, em lugares e épocas distintas.

O cenário descrito acima retrata a indústria relojoeira daquele país. Tradicional fabricante do produto, a Suíça tinha seu posto ameaçado pelos japoneses, chineses e coreanos. Os relógios digitais dos países orientais eram extremamente baratos, resultado de uma combinação entre produção em série e mão-de-obra não especializada. Enquanto isso, os suíços continuavam com a cara e lenta fabricação artesanal. Alguns modelos levavam até três meses para ficar prontos.

Para reagir, o país enfrentava outra barreira além da concorrência: a tradição. Ao lado do chocolate, o relógio é um dos maiores orgulhos da Suíça. Fabricar os melhores, mais exatos e perfeitos relógios do mundo sempre foi questão de honra. O orgulho é um sentimento perigoso. Em excesso, tem efeito paralisante. E pode levar os negócios à ruína.

A bancarrota seria o destino da indústria relojoeira suíça se não se adaptasse. E rapidamente: as marcas orientais, principalmente Seiko e Citizen, avançavam como gafanhotos. Entre 1977 e 1983, a participação da Suíça no mercado encolheu de 43% para 15%. De líder mundial, o país recuou para a terceira posição, atrás da China e do Japão.

Desesperadas, duas grandes empresas resolveram se aliar. A General Company of Swiss Watchmaking e a Societé Suisse pour l’Industrie Horlogère, antes rivais, uniram forças para enfrentar o inimigo.

O primeiro passo foi deixar o orgulho de lado e simplesmente copiar os orientais, automatizando a linha de produção. O segundo foi reduzir ao máximo o número de componentes em cada relógio: de 91 para 51 peças. O terceiro foi buscar um substituto para o dispendioso aço utilizado nas pulseiras, que, sem cerimônia, foi trocado pelo plástico.

Nem precisa dizer que as mudanças chocaram o restante da indústria do país. “Isso é uma ofensa, uma agressão à nossa história”, dispararam os concorrentes. O temor era manchar a reputação suíça e abalar a imagem de autoridade mundial no segmento.

Mas os dois fabricantes se defenderam, afirmando que as decisões foram tomadas com o cuidado de não comprometer a qualidade e honrar a tradição. Apesar de feito à base de plástico, o novo relógio era à prova d’água e mantinha a precisão e a resistência a choques.

Essa reação é comum: toda quebra de paradigmas enfrenta resistências. Como observou com perfeição o cientista britânico James Lovelock: “As idéias realmente originais seguem uma trajetória familiar. Primeiro, as pessoas dizem que se trata de um absurdo, depois dizem talvez e, finalmente, garantem tê-las defendido desde o começo.”

Além da tradicional qualidade, os suíços optaram por permanecer na tecnologia que dominavam com perfeição – a dos relógios analógicos – em vez de seguir os japoneses e seus modelos digitais.

Se o objetivo fosse apenas cortar custos, estaria resolvido. Mas os europeus sabiam que não era suficiente. Os asiáticos poderiam agir como verdadeiros kamikazes e baixar ainda mais os preços. Poderiam também, com o tempo, elevar a qualidade de seus produtos. Ou seja, o problema seria apenas adiado.

Era preciso criar algo mais, um diferencial claro, uma personalidade única, um valor emocional, qualquer coisa que pudesse fidelizar os consumidores e blindar a indústria contra investidas futuras da concorrência.

Os suíços concluíram que era preciso reinventar o negócio. Até então, o relógio era visto como um artigo duradouro, para a vida inteira. O sujeito escolhia o modelo que mais combinava com ele e não trocava mais. Isso era ruim para o segmento, porque cada pessoa comprava o produto apenas uma vez. Melhor seria se as pessoas pudessem renovar a mercadoria, trocar as peças diariamente, como fazem com as roupas.

Com esse raciocínio, os dois fabricantes transformaram o relógio num artigo de moda. A revolucionária estratégia seguia a mesma lógica das coleções de alta costura: lançar modelos diferentes a cada estação.

Assim, em 1983, foi lançada a primeira coleção Primavera/ Verão da marca Swiss Watch, ou apenas Swatch, como ficou conhecida depois.

Com seis modelos femininos e oito masculinos, as peças coloridas imediatamente conquistaram os jovens.

Duas vezes por ano, a Swatch apresentava as linhas clássica, esporte, lazer casual, moda e arte. A estratégia permitia também aproveitar oportunidades, criando modelos inspirados em eventos ou acontecimentos importantes, como a passagem do cometa Halley, em 1986.

Até a publicidade foi inovadora: para divulgar as coleções, a empresa chegou a pendurar réplicas enormes, de até 150 metros de altura, em arranha-céus das principais cidades da Europa e dos Estados Unidos.

O público aderiu em massa e o Swatch se transformou numa febre mundial. Mas, por pouco, a solução não chega tarde demais: até 1983, mais de 80% dos trabalhadores do segmento na Suíça haviam perdido seus empregos.

Graças ao fenômeno, os suíços não apenas se recuperaram, como construíram uma marca pop global. Além de redefinir toda uma categoria de produto, ainda recolocaram o país na liderança mundial no segmento. Em 1992, os relógios da marca já eram os mais vendidos. Atualmente, de cada quatro modelos vendidos no mundo, um é Swatch.


Texto extraído do livro "Oportunidades Disfarçadas", escrito por Carlos Domingos, editora Sextante, 2009.